Paul Verlaine (1844‑1896) nasceu na cidade de Metz e aí morou — sempre no apartamento em que viera ao mundo — 34 meses, repartidos pelo seu primeiro ano de vida e pelo período compreendido entre junho de 1849 e setembro de 1851. O apartamento e o seu recheio não nos encheram as medidas, criam um conjunto digno de atenção, mas désuet. Faz lá falta a mão de um museólogo. Entre aquilo que está patente ao público, só o cofre pertenceu à família de Verlaine. Extraordinária foi a guia da nossa visita, uma mulher sabedora e capaz de, durante quase duas horas, manter atentos todos os membros do grupo que eu e a Jūratė integrávamos.
Cerca de vinte anos depois de Verlaine deixar Metz com os seus parentes, parte do território loreno e alsaciano foi anexada pelos Alemães. Metz integrava a parcela em causa e o escritor, patriota, usou a pena para se insurgir contra a ocupação. O poema Metz, de 1892, é, a partir da sexta estrofe, um ato de reverência à cidade, de incitamento ao combate, de crença na vitória e no retorno ao regaço francês. Verlaine qualifica a sua terra de «mère auguste que j’aimais» e brinda o invasor com epítetos vindos do fundo de uma alma enraivecida: «Borusse misérable», «atroce engeance» (raça atroz), «lourd soldat, pédant inculte», «lourds bandits».
Noutro registo, mas em sentido convergente, afirmou: «Un homme d’esprit a dit qu’être né dans une écurie ne suffit pas pour être cheval. J’admets le mot pour l’étranger qui voit le jour en tel ou tel pays, au hasard d’un passage ou d’une mission de ses parents. Là ne fut jamais mon cas et c’est pourquoi cette émotion très réelle dont j’ai parlé et que je ressens toujours quand il est question, parfois trop légèrement, de cette Alsace‑Lorraine qu’on semble avoir un peu oubliée ou même traiter, déjà ! dans quelques milieux, de quantité négligeable.» [1]

Passei algumas vezes pelos textos de Verlaine, sem cuidados de leitura exaustiva ou sistemática, buscando apenas contentamento intelectual. Venho‑me demorando em Sagesse (Sageza), não tanto pelo prazer que sinto ao ler essa obra, mas por nela perceber um homem em diálogo consigo próprio e, sobretudo, pela forma de aí pôr em letra a conversão de Verlaine ao catolicismo. No prefácio à primeira edição do livro, o vate logo declarou esperar que, nos versos, nenhuma dissonância viesse chocar a delicadeza «d’une oreille catholique».
Eu já admiti apostatar, percorrer caminho inverso ao de Verlaine. Com frequência isso me deu que cogitar, espoletou conversas no meu imo. Acabei por rejeitar o abjuramento. Creio que nunca, nos momentos de dúvida, topei com Sagesse. Pegar nesse livro agora conforta‑me ante a decisão que tomei.
Sinto amiúde que a Igreja Católica não me representa. Designadamente, não me revejo na sua obsessão pela «família tradicional» — nem a Sagrada Família é uma «família tradicional» —, irritam‑me os seus pruridos em aceitar a diversidade — que Jesus Cristo prezou —, lastimo que o dogma e a verdade da batina ainda se sobreponham ao verdadeiro amor cristão. O meu problema não reside em Deus, mas na Igreja Católica de vezo ultramontano.
Sigo em frente, é possível ser católico e ser progressista. E a verdade é que rezo, rezo todas as semanas. Gosto de o fazer. A oração traz‑me paz, alegria, esperança, fomenta a minha vontade de comunhão com os outros (tópico relevante, pois eu prezo a solitude e, em relação a companhias, quase só quero a da Jūratė).
De Sagesse, um poema: «Non. Il fut gallican, ce siècle, et janséniste !/C’est vers le Moyen Age énorme et délicat/Qu’il faudrait que mon cœur en panne naviguât,/Loin de nos jours d’esprit charnel et de chair triste.//Roi, politicien, moine, artisan, chimiste,/Architecte, soldat, médecin, avocat,/Quel temps ! Oui, que mon cœur naufragé rembarquât/Pour toute cette force ardente, souple, artiste !//Et là que j’eusse part – quelconque, chez les rois/Ou bien ailleurs, n’importe, – à la chose vitale,/Et que je fusse un saint, actes bons, pensers droits,//Haute théologie et solide morale,/Guidé par la folie unique de la Croix/Sur tes ailes de pierre, ô folle Cathédrale !»

Se Sagesse é a empresa de Verlaine que tem prendido a minha atenção, nos próximos parágrafos tratarei de Charleroi, poema do livro Romances sans Paroles (Romanças sem Palavras).
Eis o respetivo texto: «Dans l’herbe noire/Les Kobolds vont./Le vent profond/Pleure, on veut croire.//Quoi donc se sent ?/L’avoine siffle./Un buisson gifle/L’oeil au passant.//Plutôt des bouges/Que des maisons./Quels horizons/De forges rouges !//On sent donc quoi ?/Des gares tonnent,/Les yeux s’étonnent,/Où Charleroi ?//Parfums sinistres !/Qu’est-ce que c’est ?/Quoi bruissait/Comme des sistres ?//Sites brutaux !/Oh ! votre haleine,/Sueur humaine,/Cris des métaux !//Dans l’herbe noire/Les Kobolds vont./Le vent profond/Pleure, on veut croire.»
O escrito promana das andanças do vate em terra belga e arma‑me de nostalgia. A cidade de Charleroi fica numa antiga bacia carbonífera, conhecida por «Pays Noir», que entrou na minha biografia graças a um projeto fotográfico que desenvolvi há alguns anos. Retratei mineiros aposentados, quase todos italianos, e também o Bois du Cazier, espaço musealizado num local onde, em tempos idos, se explorou um jazigo de carvão. Desses homens, não ouvi queixas a propósito da duríssima vida pregressa, lidar com eles ajudou‑me a relativizar os pesos da existência. Subido contraste: movo‑me num mundo de gente que tem tudo para ser feliz e não consegue sê‑lo, estou farto de escutar lamentações próprias de tolo.
Charleroi resgata, de maneira exemplar, os ambientes pretéritos — sombrios e opressores — da região em pauta. Nele se fala da «erva negra» e do Kobold, criatura fantástica à qual a lenda imputa as explosões de grisu, idóneas para provocar a morte do mineiro. No burgo predominam lugares sórdidos e mal frequentados («Plutôt des bouges/Que des maisons»), ele abriga seres cujos horizontes se fecham no meio da matéria incandescente («Quels horizons/De forges rouges»), almas que, como mostra o emprego da mesma estrofe no início e no fim do poema, estão presas àquela vida, nunca dela se libertarão.[2]

Termino em tonalidade ligeira e com um pormenor engraçado. Os primeiros versos que Paul Verlaine terá sabido de cor constituíam uma quadra escrita na tabuleta de um negociante de perucas, em Paris. Eram estes: «Passants, contemplez la douleur/D’Absalon pendu par la nuque :/Il eût évité ce malheur/S’il eût porté perruque !»[3]
[1] Confessions ou la vie de Paul Verlaine, [s.l., mas impresso em Brétigny‑sur‑Orge], Éditions Le Mono, [s.d.], p. 17.
[2] Para esta leitura de Charleroi, servi‑me do que escreveu Arnaud Bernadet em VERLAINE, Paul, Romances sans paroles, apresentação, notas, dossier, cronologia e bibliografia de Arnaud Bernadet, Paris, Flammarion, 2018, pp. 106‑107.
[3] Cf. VERLAINE, Paul, Confessions…, p. 23.