Perto do centro de Estrasburgo, um Sésamo se abre à curiosidade do visitante. É a Cave Historique des Hospices de Strasbourg, uma adega carregada de tradição que está situada em piso subtérreo de um estabelecimento hospitalar.
Foi fundada em 1395. Outrora, o nosocómio recebia terras e géneros de distinta ordem (vinho, cereais…) como contrapartida pelos serviços prestados. Demais, doavam‑lhe propriedades rústicas. Por vezes, uma plantação de vinhas acompanhava os terrenos. Tudo isso concorreu para que ele operasse em modo autárcico e acentuou a necessidade de cuidar dos assuntos relacionados com o vinho armazenado na sua garrafeira: a adega e o respetivo governo não eram coisa de somenos.
A Cave passou por períodos de crise e, nos anos noventa do século xx, esteve à beira da extinção. Mas hoje aí está ela, de boa saúde, aberta ao público e à vontade de quem queira comprar pinga virtuosa — eu escolhi uma de casta gewurztraminer cujo aroma e cujo sabor pareciam sair de um composto de frutas exóticas. Os barris servem também para alguns produtores alsacianos, escrupulosamente selecionados, envelhecerem os seus vinhos.
Aqui se guarda o mais anoso vinho branco do mundo conservado em tonel. De 1472, foi servido três vezes. Em 1576, aos zuriquenhos que a todo o pano se deslocaram a Estrasburgo e desse jeito se mostraram capazes de honrar com eficácia o pacto de cooperação e socorro firmado entre Zurique e Estrasburgo. Diz‑se que prepararam uma papa de milho na sua terra e que, quando aportaram à cidade alsaciana, ela ainda estava quente. Em 1718, no dia em que começou a ser reconstruído o edifício nuclear do hospital, arrasado por um incêndio em 1716. Em novembro de 1944, coube ao general Leclerc, comandante da unidade militar que libertou Estrasburgo, prová‑lo.
Na Cave, não vi nem esperava ver obras de arte, mas dei por belas peças de tanoaria. Saliento uma pipa de 1895, oferecida a Constant Tempé e a Louise Huttman por ocasião do seu casamento. A respetiva tampa, cinzelada com graça, exibe duas composições escultóricas — uma delas representa uvas e folhas de videira, a outra reproduz o brasão de Ribeauvillé, localidade alsaciana —, motivos relacionados com o universo enícola e uma inscrição em latim a anunciar que o bom vinho alegra o coração. O dito é inspirado numa passagem do Eclesiástico (40, 20): «Vinho e música alegram o coração; mas acima deles está o amor à sabedoria.» Não o mencionaram na tampa do tonel, mas espero que alguém tenha avisado os noivos que, se os eflúvios do briol ajudam a manter um enlace feliz, a sageza também conta.
A fechar, uma nota acerca da fauna humana com que deparei nesta sorte de caverna. Dos quarenta ladrões, nem sinal, mas incomodaram‑me a agrobeta que a cada chamamento do marido respondia mediante «Hã?» e o brasileiro rastaquera que, além de se mostrar descortês com a senhora da receção, mal conseguia ensacar as nádegas nas calças.
