Quinto texto da série Autores que Cantaram o Douro
Mão amiga surpreendeu‑me com a oferta de L Lhodo i las Streilhas / O Lodo e as Estrelas, um livro de Telmo Ferraz. A edição é bilingue, a tradução para o mirandês deve‑se a Amadeu Ferreira, um cultor desse idioma. Os desenhos que a ilustram são de Maria de Lourdes Chichorro Rodrigues.
O padre Telmo Ferraz nasceu em Bruçó, concelho de Mogadouro, no ano de 1925. Nos anos cinquenta do século xx, desenvolveu atividade pastoral junto dos que ergueram as barragens de Picote e de Miranda do Douro. Em Angola, acompanhou os que construíram a barragem de Cambambe e, mais tarde, criou a Casa do Gaiato de Malanje. Voltou a Portugal e continuou a servir na Casa do Gaiato.
L Lhodo i las Streilhas / O Lodo e as Estrelas é um livro de diálogos com Deus e é, sobretudo, um caderno de memórias, um conjunto de apontamentos de quem ladeou os que edificaram a barragem de Picote e as respetivas famílias. O texto é cru e a realidade que lhe subjazeu é cruel.

Eu sei — sabê‑lo‑á o espírito minimamente informado — que, nos idos do Estado Novo, eram péssimas as condições de vida dos trabalhadores. Mas tirei subido proveito de L Lhodo i las Streilhas / O Lodo e as Estrelas, que sem refolhos mostra, pela escrita de quem o conheceu, quão pesado e indigno era o fardo existencial dos cutiliquês de Picote.
A obra descarna biografias e quotidianos. Deixa registo de fome, de salários miseráveis, de operários que, por causa da exposição a partículas nocivas, padecem de silicose. A Conceição e os seus filhos moram num cortelho onde, poucos dias antes, ainda vivia um porco. À porta da barraca do Pedro, estão à vista cascas de batata, restos de lenha, papéis, cacos e cocó dos miúdos; lá dentro, só há duas tarimbas, uma é para o casal e para as crianças de colo, na segunda dormem as outras quatro crias. Telmo Ferraz dá notícia de desgraçados que se acomodam debaixo de fragas e de barracas com paredes de madeira e telhados de sacos de papel. O Manuel dorme na palha, com o seu casaco sebento. O Zé Manuel nunca viu um prato nem uma mesa, come dum caçoulo, sentado no chão. Como estas coisas não eram bonitas de ver, a censura impediu a circulação do livro, inicialmente publicado em 1960.
O país progrediu, acredito que já não haja essas situações de carência gritante. Mas vem deixando muitos para trás e, sete décadas depois, a jaça da pobreza deveria envergonhá‑lo.
Mercê da edição em português e em mirandês, L Lhodo i las Streilhas / O Lodo e as Estrelas sai valorizado e ganha arreigamento ao que lhe serviu de fons et origo. É certo que não contém primores literários, mas o padre Telmo, alma generosa e devotada ao próximo, não precisa deles para, um dia, se converter em estrela no céu.
Dou‑me com gente que tem todos os confortos da vida moderna e que, ainda assim, gasta o tempo em queixumes e denota uma incapacidade exasperante de ser feliz. As pessoas em causa poderiam retirar lição útil de L Lhodo i las Streilhas / O Lodo e as Estrelas, o livro talvez as ajudasse a medir melhor as suas verdades — que são sempre verdades de relação — e a ganhar outra perceção do mundo que as rodeia.