Por terras alsacianas

A Alsácia, no Leste da França, leva jeito de faixa composta do melhor material, a saber, solo fértil, montes, rios e arroios, colinas cobertas de vinhedo, florestas de pinheiros e abetos. Os enfeites são de bom gosto: localidades pitorescas e casas com estrutura em gaiola (é dizer, casas que têm armação de madeira e nas quais parte desta fica à vista do passante).

Deixo aqui o registo das impressões arrecadadas em seis dessas pequenas terras, através dele procuro trazer ao leitor diversas caras da Alsácia.

1. Em Hunspach senti rusticidade e apego ao costume, conjeturei mesmo encontrar senhoras com saias longas próprias de outros tempos e com o cabelo envolvido por coifa.

Quando visitei a aldeia, à graça do edificado juntava‑se a das cerejeiras em flor. No que àquele respeita, quase todas as unidades exibem estrutura em gaiola, são imóveis de cor branca que expõem madeirame escuro. Acham‑se dispostos em pequenas propriedades onde, pelo menos noutros tempos, à volta de um pátio se agrupavam casa de habitação, dependências para os serviçais, estábulo, curral e galinheiro.

Hunspach foi arrasada durante a Guerra dos Trinta Anos, coube aos suíços reconstrui‑la. A eles se deve a cor preta dos vigamentos, era cor conforme à sobriedade imposta pela sua fé protestante.

Algumas vivendas têm janelas com vidros convexos, que permitem ver e não ser visto. Constituem a escolha certa para os comilões da vida alheia, podem ser o que são sem mostrar que o são.

Um idoso quis conhecer a minha procedência. Depois de lha revelar, ele disse que anelava vida ao sol e que, se a sua mulher a tal anuísse, mudar‑se‑ia com ela para o Sul da Europa, talvez para Portugal. Vi‑me confrontado com os meus próprios temores e apontei aquilo que, na minha tese, faz decrescer a atratividade do rincão luso: a falta de água, a perspetiva de um futuro tisnado pelo excesso de calor, a ausência de horizontes para os jovens, a medrança da extrema‑direita e da sociopatia que ela traz consigo. O meu interlocutor mostrou‑se surpreendido, no seu imaginário Portugal ainda se resumia a sol, praia, boa comida e espíritos mansos.

Não esquecerei Hunspach. É bonita e, no que toca ao casario, nunca estive numa terra assim — independentemente da direção em que se lance o olhar, sempre ela oferece o mesmo traço e a mesma cor.

Hunspach

2. Também Bouxwiller denota cunho alsaciano, aí se encontra um ror de moradias com estrutura em gaiola. À semelhança do que sucede em Hunspach, a respetiva camada de argamassa é monocromática, mas as casas não são todas da mesma cor. Algumas delas ganharam feliz tipo distintivo graças às sacadas, aos balcões de janela.

Tudo isso permanece na memória, mas a verdadeira monumentalidade vai Bouxviller buscá‑la ao edifício do liceu construído no século xɪx e àqueloutros que herdou do período em que foi centro administrativo do condado de Hanau‑Lichtenberg: penso, por exemplo, no palacete onde, depois da Revolução Francesa, foi instalada a sede do município.

Na Alsácia é habitual comer bretzel (biscoito, por norma salgado, que tem a forma de um oito ou de um nó). Diz a lenda — melhor, uma das suas versões — que em Bouxwiller, no século xv, se criou o bretzel. Dorebäck, um padeiro, foi preso em virtude de ter caluniado Bárbara de Ottenheim, a concubina de Jacques, o Barbudo, conde de Lichtenberg. A instâncias da dita senhora, o nobre dispôs‑se a perdoar o réprobo caso este confecionasse um bolo através do qual fosse possível ver o sol três vezes. Ao passar diante da cadeia, Jörg, um jovem possante, ouviu os lamentos do padeiro e perguntou pelos motivos que lhes subjaziam. Na sequência da resposta que obteve, o hércules arrancou uma das grades do cárcere, dobrou‑a e deu‑lhe a forma que conhecemos ao bretzel, com três aberturas. Dorebäck fez um bolo, moldou‑o de tal jeito e assim reouve a liberdade.

Dessa estória — e da pecha que ficou por não ter visitado nenhum dos dois museus de Bouxwiller — me lembrarei sempre que comer um bretzel.

Bouxwiller

3. Mittelbergheim não foge à regra alsaciana de apresentar casas com o madeiramento à vista. Todavia, não é daí que advém o seu caráter. Este ressai da alma vitícola da aldeia, reinante no meio de vinhedos. Na fronte das casas, chamam a atenção os logótipos dos vitivinicultores. Elas e os seus anexos dão para pátios de dimensões generosas que semelham regaços sempre preparados para acolher o cliente ou o curioso. Durante o período das vindimas, imagino que Mittelbergheim fervilhe de vida e de movimento.

São muitos os imóveis de pedra, de sopro renascentista, construídos no século xvɪ: mercê da fortuna acumulada graças ao negócio do vinho, os respetivos produtores demoliram as habitações medievais, dotadas de armação em gaiola, e bastiram moradias com estrutura de material lítico.

Encarecendo o patamar situado no topo de uma escada exterior e, em especial, a cobertura bulbiforme desse patamar, há quem eleve o edifício seiscentista da câmara municipal a florão da arquitetura de Mittelbergheim. Não lobrigo razões para tanto, gostei mais da Igreja de Santo Estêvão, obra esguia e elegante, de grés dos Vosgos, que remonta a 1893 e serve os católicos. Revelou‑se necessária em virtude de repetidas desavenças entre os católicos e os protestantes do lugarejo, desde que abriu portas aos fiéis cada uma das comunidades tem o seu próprio local de culto. Sem ferir a estese ou quebrar harmonias, o templo marca diferença relativamente ao resto do património de Mittelbergheim.

Por saber que na povoação tanta boca acha sustento num produto com caraterísticas dependentes de condições edafoclimáticas, quis saber se ali se padecia de ecoansiedade. As pessoas com quem falei não se mostraram preocupadas, disseram‑me que os viticultores se adaptarão às circunstâncias vindouras e que o aumento das temperaturas pode mesmo ser vantajoso. Já no Sul da França, pelo que sei, há justificados motivos de preocupação.

Mittelbergheim

4. À semelhança de Mittelbergheim, Hunawihr arrima‑se à viticultura e está cercada de parreiral. O casario é formoso e inclui chalés com o madeirame exposto. Sucede que, depois de a ter visto noutras terras da Alsácia, a estrutura em gaiola já não tinha para mim o sortilégio da novidade, em Hunawihr ela não me encheu de entusiasmo.

A igreja e um dos cemitérios da aldeia estão localizados em recinto amuralhado. O conjunto rouba o favor dos fotógrafos, fica num outeiro que oferece boas vistas da povoação e dos vinhais. Outrora, quando o inimigo se aproximava, os habitantes de Hunawihr refugiavam‑se na igreja e a torre sineira convertia‑se em torre de vigia.

Devotado a Santiago Maior, o templo foi erguido nos séculos xv e xvɪ e acomoda, segundo os trâmites do simultaneum, o culto católico e o protestante. Aqui, ao invés do que se passou em Mittelbergheim, crenças e fervores religiosos não impediram a partilha do lugar destinado à cerimónia litúrgica. Do interior transparece despretensão, dir‑se‑ia que a temperança protestante prevalece sobre a espetaculosidade amiúde patente no templo católico. O registo que, por ser singular, logo assentou praça na minha memória não decorre da observação de arte sacra: tenho em mente o acesso ao púlpito, feito pelas escadas postas atrás da coluna a que ele está adossado e por um vão aberto nessa coluna.

Eu e a Jūratė jantámos na winstub Suzel, uma dessas tabernas típicas alsacianas cujo arreio inclui uma salamandra e nas quais vem para a mesa manjua regional. Agradou‑nos o gratinado de batata, toucinho e queijo Munster, rico paladar tinha o apfelstrudel (esta espécie de torta deve ter recebido bênção divina pois, independentemente do país ou do local em que é servida, sabe sempre bem).

O sortimento só incluía vinhos produzidos pelos viticultores de Hunawihr, mas tal bastava para que nele estivessem representadas as mais emblemáticas castas e variedades de castas da Alsácia, a saber, sylvaner, pinot blanc, pinot gris, pinot noir, gewurztraminer e riesling. Bebemos um tinto de cepa pinot noir, uma pinga fresca e frutada que nos satisfez.

Hunawihr

5. Em viagem, foge‑me o pé para as igrejas de risco moderno ou contemporâneo. Despertam em mim o sentimento do belo, nelas tenho reavido a presença de Deus, à espiritualidade gosto de associar a estética. E, bem entendido, aprecio o debuxo inovador e vanguardista.

Visitei, por conseguinte, a Igreja de Nossa Senhora da Anunciação, que faz parte do Santuário de Nossa Senhora das Três Espigas. Projetada pelos arquitetos Pierre Keller e Pierre Dumas, foi construída nos anos sessenta do século xx e fica numa aldeia, num alto onde, em 3 de maio de 1491, a Virgem apareceu a um ferreiro, Thierry Schoeré. A Igreja Católica reconhece a aparição.

Nossa Senhora apresentou‑se com três espigas numa mão e um cubo de gelo na outra e disse a Thierry que aquelas simbolizavam fartura e anunciavam as bênçãos guardadas para os virtuosos, para os que expiassem as suas faltas. O cubo de gelo representava o granizo, a geada e as maldições que se abateriam sobre os que não se redimissem dos seus pecados. A Virgem acrescentou que Thierry deveria publicitar a aparição e divulgar a mensagem que ela lhe transmitira. Num primeiro momento e porque temia ser alvo de troça, o ferreiro não o fez.

No mercado, comprou um saco de trigo, mas não logrou carregá‑lo no cavalo, o saco parecia preso ao chão. Os que o tentaram ajudar tampouco tiveram sucesso. Thierry considerou‑o um sinal dado por Nossa Senhora e deu a conhecer o extraordinário evento. Facilmente levantou o saco. O povo acreditou nele e o raconto da aparição ganhou asas.

A igreja é um bloco bonito cuja estrutura, horizontalista, contrasta com as três hastes de betão, erguidas a seu lado, que recordam as espigas da Virgem Maria. Na nave, senti‑me dentro de um casco de navio em posição invertida. Gostei dos vitrais, cuja beleza só pode ser apreciada por quem entre no templo, mas o mobiliário litúrgico pareceu‑me desenxabido. Apesar de ser fã do minimalismo, não morri de amores por aquele espaço denudado.

Volto ao que me aprouve e termino assinalando que, pelo bosque próximo da igreja, estão espalhados 15 oratórios de grés. Cada um deles abriga uma escultura de madeira evocativa de um mistério do rosário.

Igreja de Nossa Senhora da Anunciação

6. O leitor encanta‑se com povoações fortificadas?

Se a sua resposta for afirmativa, decerto apreciará Neuf‑Brisach, praça de guerra erguida entre o fim do século xvɪɪ e o início da centúria seguinte. É a obra‑mestra de Vauban, o génio da arquitetura militar que tanto fez pela defesa do território da França de Luís XIV.

A cidadela tem a forma de um octógono inscrito numa estrela: ao segundo muramento, com desenho de polígono oitavado e costeado por uma vala, antepõe‑se uma primeira cintura de muralhas, em jeito de estrela.

Embora a disposição das ruas de Neuf‑Brisach evidencie, também ela, um rigor geométrico que enseja a euritmia e o favor estético, eu e a Jūratė não gostámos do que vimos intramuros: prédios feios, uma igreja sem graça e gente que parecia infeliz. A Caserna Suzonni deve ter sido bonita, mas os sinais da passagem do tempo deixaram‑na com má fronte.

Jantámos no restaurante de timbre désuet do hotel Aux 2 Roses. Comemos um fondue au Munster no qual a vedeta não foi o queijo, antes a charcutaria de altíssima qualidade. Quanto à tarte de maçã queimada com calvados, não deixou boa memória gustativa.

Neuf-Brisach

Hunspach

Etiquetas: ,