País Rato, de Jorge Roque, e algumas observações

País Rato, de Jorge Roque, é um livro que agrupa oito textos[1]. Trata‑se de prosa que, pela cadência, se pode qualificar de prosa poética. É uma obra percuciente, de escrita enxuta, que radica e insiste na visão de Portugal enquanto terra maldita e desgraçada. O livro estrutura‑se em função dessa perspetiva e consome o autor, consome o leitor, consome‑nos a nós, Portugueses.

O início é esclarecedor. Nele (p. 7) se lê: «O que quer que cresça, mal desponta, é roído pelos ratos. E os ratos proliferam, dissimulados e viscosos, com o seu brilho torpe de animal de esgoto.» Quando sai do segundo escrito, o tuga já não leva esperanças, ficou a saber que vive num «recanto onde a vida tem o sabor de mais um dia enganado» (p. 10).

O terceiro fragmento, Casa de Amigos, cai sobre nós, atira‑nos à cara aquilo que já experimentámos e que vamos sentindo na pele. Na p. 16, pergunta‑se que «poderá haver para acreditar num país que atravessou todos os regimes e permaneceu feudal na ordem económica e social, estreito na ambição mental, avaro no reconhecimento da grandeza e, mau grado afectuoso e queridinho, subterraneamente implacável no extermínio da diferença de quantos por excepção o ultrapassam e seriam os únicos que lhe poderiam trazer o que precisamente lhe falta». Na muche! Em meio que conheço, o universitário, o fenómeno é aterrador. O tráfico de influências e o favor a ratos, a filhos e a familiares de professores deixavam‑me por vezes à beira do vómito. Ora essa, não há problema. Valem as tradições, a anciania e o prestígio como critérios. E temos «o fado e a saudade que são a elaboração simbólica do fatalismo que muito convém aos que há longo tempo mantêm empresas de exploração neste enclave onde a miséria é a matéria‑prima por excelência» (p. 18). Vem depois uma conclusão, a de um «país em que cada cidadão é turista, apenas reconhecendo por pátria a existência individual, nunca a coletiva» (p. 23). No meu entender, isso também resulta de as pessoas se enclausurarem no mundo virtual.

O quinto escrito exibe o mais sugestivo dos títulos: Bem‑vindo ao País da Morte em Vida. O título volve‑se refrão, várias vezes repetido ao longo do pedaço de prosa em causa. Jorge Roque dá as boas‑vindas ao leitor e fecha o texto dirigindo‑lhe um conselho, é dizer, «pira‑te enquanto podes, a sete pés, setecentos, todos os de que fores capaz, pira‑te de vez, sem olhares para trás, sem olhares para a frente, haja ou não haja frente, exila‑te, fora ou dentro, guardando sempre a máxima distância, irreconciliável distância, sem nunca esqueceres a aversão, o repúdio, o asco, tudo quanto te afasta irredutivelmente daqui» (p.  44). Pisgam‑se muitos jovens e, se pudessem, fá‑lo‑iam outros, mais velhos.

Em post scriptum, na p. 52, o autor assinala: «Entre mim e o sujeito deste livro não se trata de ódio, contudo. Indignação ou fúria seriam palavras mais exactas. Indignação de viver uma vida minuciosamente roída pelos ratos. Fúria de lhes dar combate, mesmo sabendo que os ratos serão sempre em maior número e nenhuma vitória altera a irrevogável desproporção.» E acrescenta ter pretendido que cada um dos textos do livro «fosse grito, sobressalto de vidas entorpecidas na regular existência cabisbaixa». Cumpriu o seu desígnio — neste opúsculo obsidiante, os brados são estrídulos.

País Rato prendeu‑me, deu‑me vontade de com ele dialogar, desde logo por mor da minha condição de emigrante. Depois, no meu trabalho ex post, dele me fui deslaçando.

Não desisto de Portugal e, nos últimos tempos, nada ocupou tanto o meu espírito como pensar em que partido votar nas eleições legislativas de março.

Sei que tenho a infeção da saudade, mas declaro o meu regozijo por o país ser «queridinho». Se o não fosse, sem calor humano, seria ainda pior.

Já vi mundo e creio que, embora talhado de males e imperfeições, o torrão luso ainda não é mau sítio para viver. Os defeitos dos Lusitanos não se encontram noutros povos?

Em Portugal, penalizam‑me os salários baixos e o círculo vicioso da pobreza. Agora, inquieta‑me também certo tipo de ratice, a dos que usam a democracia para a aniquilar. Atento no boníssimo resultado que o Chega conseguiu nas ditas eleições e afirmo que, se não tivermos cautela, mesmo particular cautela, outros êxitos desse partido nas urnas abrirão caminho à autocracia, ou seja, a uma realidade qualitativamente diversa daqueloutra que conhecemos durante as últimas décadas (o caudilho até já está escolhido). E com ela virão o fim do Estado de direito, o retrocesso civilizacional e o ataque aos direitos das minorias e das mulheres.

Nem se diga que a minha visão é parcelar, que o Bloco de Esquerda (BE) constitui a outra face da moeda. Do programa ativo do BE não decorre a destruição do regime democrático.


[1] ROQUE, Jorge, País Rato, Lisboa, Maldoror, 2023.

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