1. O Mosela é um departamento cujo nome radica no rio que o atravessa. Situa‑se na região administrativa francesa do Grande Leste — atento na divisão territorial definida pelo lápis do funcionário — e na região da Lorena — agora, tenho em conta a demarcação engendrada pelo povo, pela sua história e cultura. No passado, as minas e a indústria siderúrgica alimentaram um sem‑número de famílias, hoje avultam, entre outros, o setor automóvel, o da madeira e o das tecnologias de ponta. No Norte do Mosela, a indústria continua a dar cartas. No Sul e no Leste, a natureza e a floresta ganham destaque.
O Mosela que apresentarei, neste e noutros textos, resulta de uma viagem feita na primavera de 2024 e da seleção que nela operou o meu espírito apreciador de património cultural, artístico e arquitetónico. Andei por terras e terrejolas desprovidas de sinais de turistificação e amiúde conversei com o íncola, que sabia estar diante de um forasteiro, mas não o via como mera fonte de rendimento nem com ele se relacionava de jeito automatizado.
2. Em Sarreburgo, numa capela (já sem afetação religiosa) que integrou a igreja de um convento de franciscanos, portento artístico e estético me esperava: A Paz, o maior — acredito que também seja o mais bonito — dos vitrais concebidos por Marc Chagall. Executado por Charles Marq, ocupa o vão rasgado na parede fundeira da capela, atinge 12 metros de altura e 7,5 metros de largura. Mostra vivacidade no engenho, cores chamativas e bem distribuídas. Os azuis e os vermelhos são de truz.

Chagall foi leitor interessado e entusiástico da Bíblia, que avonde o inspirou. Para organizar a composição do vitral, respigou, no Antigo e no Novo Testamento, figuras e episódios idóneos para evocar a paz. Designadamente, representou Isaías e, para ilustrar a profecia dele relativa à reconciliação de todas as criaturas, desenhou um leão, uma vaca e uma serpente. Lembre‑se que, na visão irénica do Livro de Isaías, o bezerro e o leãozinho pastarão juntos, um menino guiá‑los‑á; como sucede com o boi, o leão alimentar‑se‑á de forragem; um bebé brincará ao pé do esconderijo da cobra e um menino meterá a mão no buraco da serpente e nenhum dano sofrerá.
O buquê que domina a composição continua a ostentar viço. Figura a árvore da vida, nela se acham Adão e Eva.

Enquanto estive na capela, os deuses da fortuna acompanharam‑me. A luz solar assegurou bom jogo cromático e, porque só eu ali me encontrava, gozei de tranquilidade para apreciar A Paz.
No Musée du Pays de Sarrebourg, continuei a privilegiar o rasto de Chagall. Com detença observei A Paz, tapeçaria de grande dimensão, de Yvette Cauquil‑Prince (a belga que transpôs para o tecido o trabalho de vários pintores). Ela replica um guache de Chagall, obra preparatória de um vitral instalado na sede da Organização das Nações Unidas, em Nova Iorque. Também aqui, o mestre recorreu a personagens e a cenas bíblicas para trazer à baila a paz.

Estou cansado das guerras que assolam o mundo, noto que o apelo à concórdia e ao armistício produz minguado efeito. Talvez por isso, soube‑me especialmente bem sentir a sugestão de paz proposta em suporte artístico.
Na França, abundam as boas pastelarias. Contudo, parte delas não dispõe de lugares para os clientes se sentarem e, por conseguinte, não me traz conveniência. Em viagem, palmilho cidades, vilas e aldeias e preciso de me abancar nos tempos de pausa.
A confeitaria Antoni cumpria os meus preceitos higienistas e outros requisitos que para mim são importantes: engloba um salão de chá e propunha sortido capaz de ameigar olhos e estômago. Afinquei‑me à gastronomia regional e comi pâté lorrain, um folhado com recheio de carne de porco marinada em vinho branco. Quanto à clientela, ainda hoje não esqueci uma mulher mestiça, esbelta, de cabelo castanho (com manchas douradas) ligeiramente escadeado. Nela enxerguei capricho antilhano.
