O Centro Pompidou‑Metz e o seu tributo a André Masson. Dias feios

1. No que à arquitetura moderna e contemporânea de Metz diz respeito, eu e a Jūratė outorgámos preferência à Igreja de Santa Teresa do Menino Jesus e ao Centro Pompidou‑Metz. O betão de que é feita a primeira, acabada de construir em 1954, mostra sinais nefastos da passagem pela pira do tempo. Já o segundo, inaugurado em 2010, mantém o esplendor estético, aliado — assim nos foi dado ver — a exposições de estalo.

O Centro Pompidou‑Metz foi concebido pelos arquitetos Shigeru Ban, Jean de Gastines e Philip Gumuchdjian. Graças ao desenho do edifício e ao abundante emprego do vidro, o visitante não sente corte profundo ao passar do exterior para o interior do imóvel.

O conjunto formado pela cobertura, ondeada e em hexágono, e pela armação de madeira que a sustenta produz belíssimo efeito, desses que resistirão à usura dos gostos. As três galerias de exposição, uma por piso, semelham tubos paralelepipédicos, canos em sobreposição e orientados de maneira diversa. Algumas das suas extremidades irrompem através de aberturas feitas no telhado.

À semelhança de outros, ali vejo uma casa de estrunfes, uma elegante casa de estrunfes.

Centro Pompidou-Metz. Foto: jdg-architectes.com

2. Uma das mostras que ali visitámos intitula‑se Il n’y a pas de monde achevé (Não há mundo acabado) e reúne trabalhos de André Masson (1896‑1987). No centenário do primeiro Manifesto Surrealista, o Centro Pompidou‑Metz presta tributo a um homem das artes que se notabilizou principalmente enquanto pintor de traço surrealista. A sua obra influenciou Arshile Gorky e Jackson Pollock, atores relevantes para o desenvolvimento do expressionismo abstrato.

Em 1924, no citado manifesto, André Breton apresentou o surrealismo como «automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento». Era o «ditado do pensamento, na ausência de qualquer controlo exercido pela razão, fora de qualquer preocupação estética ou moral». Mas já em 1923, ao aplicar tinta no papel, Masson se deixava levar pelo desenho automático: com o intuito de permitir que a subconsciência se revelasse, a mão movia‑se sem obedecer a programa prévio. Em fase posterior da sua carreira, Masson recorreu a outro tipo de automatismo, agora na pintura: espalhava cola no suporte da composição, deitava lá areia e, por fim, botava traço e cor.

A biografia de Masson espelha parte do curso do século xx. Ferido em combate durante a Primeira Guerra Mundial, foi tomado de trauma que nunca o largou. Ante o crescendo da ameaça fascista na França, em 1934 emigrou para Espanha. Por mor das atrocidades da Guerra Civil, regressou ao Hexágono em 1937. Partiu para os Estados Unidos em 1941 — na sua mulher corria sangue judio. Em 1945, terminada a Segunda Guerra Mundial, voltou para França.

Masson empenhou‑se na disputa política, a sua arte delatou a tirania e a opressão. Nos idos da Guerra do Rife, denunciou o imperialismo colonialista francês. Quando viveu em Espanha, pôs o seu engenho ao serviço de grupos anarquistas, para os quais ideou peças de propaganda. Bandarilhou Franco e a Igreja Católica, aliada do ditador. Durante o exílio além‑Atlântico, apoiou a associação France Forever, que dos Estados Unidos laborava em prol de uma França liberta do regime nazi. Subscreveu o Manifesto dos 121, publicado em setembro de 1960 com o objetivo de respaldar o independentismo argelino. Solidarizou‑se com o seu filho Diego, detido por participar nas atividades de uma rede de auxílio aos militantes da Frente de Libertação Nacional da Argélia, e pôs em desenho o que viu na cadeia por ocasião das visitas ao rebento.

A mostra Não há mundo acabado compreende os livros da biblioteca que Masson tinha em Paris e obras de várias fases da sua carreira. Dos anos vinte, assinalo os óleos em que ele utilizou areia (nos termos que atrás indiquei) e os trabalhos da série Florestas e da série Jogadores. Dos anos trinta, registo as imagens que radicam naquilo que Masson viu durante a estada em Espanha. À uma, trata‑se de telas (com rico jogo de cores) nas quais o artista privilegiou quatro motivos, a saber, trabalhadores rurais, touradas, insetos que ele próprio antropomorfizou e paisagens que o seu punho tornou mirabolantes. À outra parte, vem ao caso empresa de cariz político e social: desenhos nos quais Masson caricaturou Franco e os poderes a ele associados, e pinturas evidenciadoras do ambiente opressivo e sinistro da Espanha naquela fatia dos anos trinta do século passado.

No que tange ao resto do percurso expositivo, saliento os quadros do ciclo americano. Masson combinou os modos soltos com as cores que o outono estampava nas florestas da zona em que vivia, no Connecticut, e o resultado foi aquilo que ouvi qualificar de «surrealismo telúrico». Quanto à produção artística posterior ao regresso a França, no fim da Segunda Guerra Mundial, notei que ostentava menos fôlego dramático do que aqueloutra adveniente das andanças espanholas e americanas.

André Masson, A Glória do General Franco, de 1938

3. Admiro o talento de Masson, os respetivos jeitos e liberdades surrealistas, a arte do excesso e da cor. Ressoa em mim o seu exemplo cívico, a luta contra o despotismo. Será que as incidências da vida dele e de outros como ele — nomeadamente a condição de pessoa que a ameaça fascista e a invasão nazi forçaram a andar de casa às costas — não acendem uma luz junto de quem vota nos partidos de extrema‑direita e, ao fazê‑lo, desabrocha cometimentos de caráter totalitarista?

Estão feios, os dias. Na Alemanha e na França, vários políticos foram agredidos. Recentemente, na cidade do Porto, ocorreram ataques violentos, de índole racista. Não caíram do céu, ensejaram‑nos o discurso de ódio da extrema‑direita, as vozes que a normalizam, a eleição de cinquenta deputados do Chega. No contexto da radicalização que se sente na vida política e social da Eslováquia, Robert Fico, o primeiro‑ministro, foi alvo de uma tentativa de assassinato. Delito bárbaro e merecedor de condenação, mas logo houve quem por ele responsabilizasse os média independentes. Em Buenos Aires, na noite de 5 para 6 de maio, um homem lançou um cocktail Molotov para dentro de um apartamento onde moravam dois casais de lésbicas. Em consequência do incêndio superveniente, três das mulheres que ali viviam acabaram por morrer. O autor do ato foi um sexagenário que já há algum tempo as insultava, a verve homofóbica de Milei deu largas ao seu instinto criminoso.

O dissídio é inerente à vida em comum, mas o que se tem visto ultrapassa os limites da decência e da lei. O discurso extremista e populista, habitual na boca da extrema‑direita e fácil de disseminar através das redes sociais, é estruturalmente antropofóbico e tem criado inaudita agressividade na esfera pública. Quem o sufraga brinca com o fogo e belisca o Estado de Direito, que é a primeira e a última das nossas salvaguardas.

O campo político em questão critica as elites e apela aos desafortunados. É, no entanto, financiado pelo baronato da economia e só admite que o Estado seja um guarda‑noturno, um ente sem preocupações sociais e sem ousadias no sentido de redistribuir a riqueza. Tal modelo de sociedade e de Estado queimará, em primeiro lugar, os pobres.

Tudo isto é assim tão difícil de entender?


André Masson, Tourada ao Sol (pormenor), de 1936
André Masson, óleo de 1923 que integra a série Jogadores
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