Notícias do retrocesso civilizacional

Na Europa e no continente americano, pela ação ou pelos propósitos de ultraconservadores, de fanáticos e de gente insensata, a sociedade anda para trás.

1. Em diversas partes dos Estados Unidos, mesmo que uma gravidez haja resultado de violação ou de incesto, o aborto é proibido.

Numa decisão recente, o Supremo Tribunal do Alabama considerou que os embriões congelados são crianças e devem ser protegidos pelas leis que tutelam os interesses dos menores.

Em consequência, várias instituições do Alabama interromperam os procedimentos de fecundação in vitro que vinham levando a cabo temeram que, dando‑lhes continuidade, médicos e pacientes pudessem ser alvos de processo judicial.

Assim, por força de um acórdão que contraria o bom senso e a lição da ciência, os cidadãos do Alabama correram o risco de perder o acesso a tratamentos de fertilidade, comuns e padronizados. Os habituais extremistas da família acabam por se opor à família.

Depois, o legislador veio alijar a responsabilidade civil e criminal dos prestadores desse tipo de serviços e dos respetivos pacientes em caso de dano ou de destruição dos embriões.

O tempo, a energia, os recursos gastos a lutar contra os efeitos da falta de tino…

2. Confrontado com acusações de ser machista, Gonçalo da Câmara Pereira, líder do PPM, disse que o não era, pois tem mulher, filhos e filhas, nunca havia batido numa senhora e nem sequer alguma vez pensara fazê‑lo. É espantoso. Mais palavras para quê?

3. Paulo Núncio é vice‑presidente do CDS. Do seu partido, só ele e o líder se encontram em lugar claramente elegível nas listas de candidatos a deputados da AD.

Em matéria de interrupção voluntária da gravidez (IVG), o cavalheiro em apreço declarou que, mal isso seja possível, importa convocar um referendo no sentido de inverter o teor da lei vigente. O assunto está resolvido no seio da comunidade, a posição sufragada por Paulo Núncio seria derrotada em consulta ao povo. Mas mencionar a hipótese de um referendo acerca do aborto é, já em si, deplorável.

Sucede que esse homem com responsabilidades afirmou também que «devemos ter a capacidade de tomar medidas no sentido de limitar o acesso ao aborto». Ou seja, se não for pela porta grande do referendo, por alguma janela — de alteração da lei — se logrará dificultar o acesso ao aborto. Isto é perigoso.

Respeito a opinião do vice‑presidente do CDS, respeito a opinião de toda a gente. Mas aquela ofende os direitos reprodutivos das mulheres, que trata como ineptas e incapazes de determinar o seu destino. Além disso, lesa a segurança jurídica, a proteção de expetativas e de interesses legítimos. Uma minoria de zelotas não pode pôr em causa o acervo societal.

Suponho, por outro lado, que as emendas ao regime da IVG que Paulo Núncio carrega no espírito deixariam em maus lençóis as mulheres pobres e promoveriam o desmancho clandestino.

Tem remédio simples quem alinha com Paulo Núncio e é contra o aborto: não o faz. Mas não é legítimo impedir outrem de o fazer.

E isso também é válido para a eutanásia. Na Bélgica, país onde vivo, pesam‑me o baixo nível dos serviços e a estupidez que muita gente denota. Mas há algo que me agrada e me faz sentir livre: o respeito pela convicção alheia, pelas opções éticas de cada indivíduo. A Bélgica, um país desenvolvido, tem, desde 2002, uma lei que, verificadas certas condições, despenaliza a eutanásia. Desde 2014, também os menores não emancipados a podem pedir (os seus representantes legais têm de dar anuência).

Termino este trecho com versos de Serge Pey, um poeta francês. Diz ele que «Mourir est une capacité/jumelle à celle de vivre/Tout est affaire de point de vue».

4. Na Argentina, Javier Milei proibiu o uso de linguagem inclusiva nos organismos públicos e nas Forças Armadas. Vindo de quem vem, não surpreende, é um homem que rejeita as políticas de igualdade de género.

5. Nem todas as notícias são más. No dia em que escrevi este texto, 4 de março, a IVG foi inscrita na Constituição francesa, nos seguintes termos: «La loi détermine les conditions dans lesquelles s’exerce la liberté garantie à la femme d’avoir recours à l’interruption volontaire de grossesse.» Parabéns à França. Trata‑se de uma vitória da cidadania, da igualdade e da democracia, só satisfeitas na medida em que se garanta às mulheres o pleno exercício dos seus direitos reprodutivos. Apenas lamento que se fale de «liberdade» e não de «direito».

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