No Museu Unterlinden, em Colmar, o Retábulo de Issenheim

Colmar é uma cidade bonita, com moradias que têm armação em gaiola e deixam o madeiramento à vista. Reúne monumentalidades de tipo diverso, nela distingo o Museu Unterlinden, que funciona num antigo convento de dominicanos e em espaços modernos a ele ligados por uma galeria subterrânea.

Em Colmar detive‑me diante de muita coisa bonita, é do Retábulo de Issenheim que tenho ganas de falar. Vi‑o há quatro meses, enquistou‑se no meu espírito. Presuntivamente construído entre 1512 e 1516, é empresa de Matthias Grünewald (no que toca à pintura a têmpera e a óleo em painéis de madeira de tília) e de Nicolas de Haguenau (no respeitante às esculturas, também de madeira de tília). Patente ao público no Museu Unterlinden, acha‑se exposto em três conjuntos, apresentados separadamente, na igreja do antigo convento de dominicanos.

O políptico destinou‑se a colocação no altar‑mor da igreja dos antonianos em Issenheim, na Alsácia. Os religiosos de Santo Antão recebiam e tratavam vítimas de fogo de Santo Antão, é dizer, de ergotismo, maleita causada pela ingestão de centeio atacado por um fungo denominado cravagem‑do‑centeio. Defronte do retábulo, os enfermos rezavam, pediam cura e tomavam uma bebida, preparada com vinho e plantas medicinais, na qual haviam sido mergulhadas relíquias do santo.

No altar da igreja de Issenheim, o retábulo permanecia fechado ou era aberto (numa de duas configurações) em função do calendário litúrgico.

1.

Fechado — assim estava durante a maior parte do ano —, o retábulo exibia a Crucifixão e a predela com a Lamentação na parte do meio, São Sebastião no volante da esquerda e Santo Antão no da direita.

Recorde‑se que Sebastião, oficial da guarda pretoriana, ajudou os prisioneiros cristãos. Diocleciano tomou isso como uma traição, procurou, embalde, que ele renunciasse ao cristianismo e ordenou que, com recurso a setas, o assassinassem. As flechas feriram‑no, mas não o mataram. Decorrido algum tempo, Sebastião apresentou‑se perante Diocleciano e censurou‑o pelo acosso aos cristãos. Na sequência de nova ordem do imperador, foi espancado até morrer. Porque as chagas deixadas pelas flechas eram semelhantes às caraterísticas da peste, São Sebastião foi invocado por quem pretendia ficar livre dessa doença. Fazia, pois, sentido que houvesse uma imagem sua no Retábulo de Issenheim, acreditava‑se que tanto ele como Santo Antão ajudariam a combater o ergotismo.

A Crucifixão pintada por Matthias Grünewald na estrutura central do políptico é pungente. O Cristo supliciado que aí se vê, e cujo corpo verte sangue, é o dos que penam, dos que lidam com tormentos. Um Cristo em péssima condição para fiéis em mau estado. Assim se incutia no espírito de quem padecia de dor física ou moral a ideia de que o respetivo infortúnio pouco significava quando cotejado com as sevícias impostas a Jesus Cristo. É caso para dizer que este Cristo representa o antípoda daqueloutro, guapo, inicialmente proposto para o cartaz da Semana Santa de Sevilha em 2024.

O dramatismo da Crucifixão é reforçado pela agonia expressa em gestos e esgares de Maria Madalena, da Virgem Maria e de São João Evangelista. Maria, deveras pálida, é amparada por João.

À esquerda do Crucificado, Grünewald pôs um cordeiro e São João Batista, que aponta para o filho de Deus e diz, em inscrição no fundo da tela, «É preciso que Ele cresça e eu mingue». A presença de João, que já não estava vivo quando Jesus morreu, é simbólica.

2.

Por ocasião de certas festas litúrgicas — dedicadas a Nossa Senhora, nomeadamente —, o retábulo era aberto numa primeira configuração. Mostrava pinturas que assoalham a Anunciação (volante do lado esquerdo), anjos em concerto e a Virgem com o Menino Jesus (painéis centrais) e ainda a Ressurreição (volante do lado direito). O negrume e o peso da existência dão agora lugar a uma mensagem de alegria e à perspetiva da salvação, que ajudariam os crentes a carregar seus fardos.

O cariz hierofânico da Anunciação sai reforçado por ela decorrer em lugar eclesial, não em espaço exterior de Nazaré ou no quarto de Maria. Porquanto o Livro de Isaías é um dos textos sagrados onde se faz referência à Anunciação, o profeta aparece na parte superior da composição.

Dos painéis centrais ressuma júbilo, celebração e homenagem a Maria, presente, à uma, num baldaquino em que os anjos lhe prestam tributo — dois deles tocam instrumentos musicais, outros dois parecem prontos para a coroar — e, à outra parte, num jardim fechado (símbolo da sua virgindade) com o Menino Jesus em seus braços. Este brinca com um colar de coral, peça que, na crença popular, servia para afastar os males. A pequena cama, o pote e a tina vincam a dimensão humana do filho de Deus. Tão feliz evento encontra eco na imagem do topo da tela, que sugere o triunfo e a glória do Pai.

A Ressurreição — que também é Ascensão — pintada no volante do lado direito é a de um Cristo que se eleva no ar, a caminho do céu. O seu corpo parece fundir‑se com uma mancha de luz intensa e a mortalha que o tinha envolvido ganha cores diversas. Ao invés, os guardas, no chão, fazem um estenderete, deles só se evola a impressão de derrota, de fiasco.

3.

Aberto numa segunda e última configuração, o retábulo apresenta, na estrutura central, diversas figuras esculpidas. Sentado, aí prepondera Santo Antão, que segura um livro com uma mão e empunha o bordão rematado por tau com a outra. Junto a seus pés, um porco; diante dele, dois homens, um leva‑lhe uma galinha e o outro vai oferecer‑lhe um reco. À direita de Santo Antão encontram‑se Santo Agostinho e, em estátua de acanhada dimensão, Guy Guers, o superior da Ordem de Santo Antão que encomendou o retábulo: os antonianos seguiam a regra agostiniana. À esquerda de Santo Antão vê‑se São Jerónimo, escoltado pelo leão. O conjunto escultórico da predela recria Cristo e os 12 apóstolos.

No volante do lado esquerdo, Matthias Grünewald pintou a visita de Santo Antão a São Paulo (episódio narrado por São Jerónimo, há pouco referido) e incluiu na tela plantas utilizadas na preparação da bebida dada aos que sofriam de ergotismo. O ar bravio da paisagem contrasta com a bonomia dos dois velhos.

O volante do flanco direito remete para o universo das Tentações de Santo Antão, o santo é atacado por criaturas horrendas. A composição é dramática, mas a presença do Pai, lá no alto, transmite uma mensagem de otimismo: a fé leva à salvação. A figura que se encontra no canto inferior esquerdo da tela tem um aspeto repugnante (corpo coberto de pústulas, barriga inchada, um coto no lugar do braço esquerdo, um pé que semelha a pata de um pato). Tratar‑se‑á de alusão aos indivíduos afetados pelo ergotismo?

Assim é o Retábulo de Issenheim. Vergou‑me quando o vi, não sai da minha cabeça. Ufano‑me de o trazer no meu bornal. É obra de escol e a lição de esperança dada a quem experimentava ralações naquele mundo velho — de Guy Guers, Matthias Grünewald e Nicolas de Haguenau — serve também no nosso mundo novo.

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