No Museu Picasso, em Antibes

Segundo texto de uma série baseada na viagem, devotada ao património cultural, que fiz no Sul da França (Costa Azul e Provença) durante o verão de 2025

1. Começámos a circular em Antibes, eu e a Jūratė, e logo tratámos de estugar o passo. Uma massa de turistas inçava as ruas da cidade e criava um cenário pesado e anestético. Alguns desses visitantes, gordos e bêbados, pareciam odres, odres sobre pernas. Ainda assim, depressa chegámos ao Museu Picasso, no Castelo Grimaldi.

Em 1925, o alcácer da família monegasca foi adquirido pelo município local, que nele instalou o Museu Grimaldi. No ano de 1946, quando Pablo Picasso feriava nas redondezas, em Golfe‑Juan, com a sua companheira — Françoise Gilot —, Romuald Dor de la Souchère, conservador do museu, abordou‑o e convidou‑o a montar ateliê naquele edifício. O artista anuiu à proposta, ali permaneceu alguns meses e ali produziu obra (pinturas e desenhos) marcada por oportuna joie de vivre: a Europa deixara, havia pouco tempo, os horrores da guerra. O mestre ofereceu os trabalhos em causa à cidade, a qual, em 1947, lhe prestou tributo mediante a abertura, no museu, de uma sala devotada à sua empresa. Mais tarde, a instituição acolheu outras criações de Picasso e, em 1966, recebeu também o seu nome.

No presente, o acervo integra manufatos de Picasso e de outros artistas — cito Hans Hartung, Anna‑Eva Bergman e Nicolas de Staël, que viveram em Antibes. De Picasso, vi pinturas, desenhos, gravuras, esculturas e peças de cerâmica (pratos, jarras, tânagras e objetos zoomorfos, por exemplo).

2. Quando tive de escolher aquilo que traria ao leitor senti um embaraço de rico, tal era a divícia no conjunto de salas e corredores do museu adornados com feituras do malaguenho. Escrevo liberto de constrições académicas, optei por dois critérios, o do gosto e o da vinculação do trabalho a Antibes. Vou, pois, vou deixar meia dúzia de notas sobre uma peça de escol, La joie de vivre, e a propósito de três grupos pictóricos, a saber, o das cabeças de fauno, o das naturezas‑mortas geométricas e aqueloutro com fons et origo na observação das gentes de Antibes.

2.1. Em A Alegria de Viver (1946) — o tema de Le bonheur de vivre, de Matisse, autor com o qual Picasso manteve interlocução de cariz artístico —, Picasso aplicou óleo, resina e carvão numa placa de fibrocimento.

Na praia, decorre uma festa à moda antiga, para a qual foram convidadas figuras da mitologia. Um centauro e um fauno acompanham com música a dança de uma ninfa (inspirada em Françoise Gilot), colocada no centro da composição, e os saltos de duas cabras. A vinha, no canto superior direito, sugere uma bacanal.

Os personagens apresentam‑se perante o público como se estivessem num palco de teatro, da parte central da composição ressai movimento, dinamismo. Tocando pandeiro e dançando, a ninfa, bem cotejada pelos animais que cabriolam, dá ritmo ao jubiloso sucesso.

Pablo Picasso, A Alegria de Viver (Museu Picasso, Antibes)

No verso do quadro, o mestre escreveu «Antipolis», nome grego de Antibes. O autor associou dois tempos diferentes: a Antiguidade — nas suas palavras, esta invadia‑o sempre que estava em Antibes — e o seu tempo, um tempo venturoso, de paz na Europa, de banhos no Mediterrâneo e de celebração do amor que ligava Picasso e Françoise Gilot. O otimismo que contagia quem olha para o quadro vem juntar‑se ao respetivo préstimo estético e ao interessante jogo de cores e de linhas que nele tem lugar.[1]

2.2. As Cabeças de Fauno datam de 1946. São aguarelas e óleos nos quais, para os lineamentos, Picasso se serviu de tinta da China, grafite ou carvão. O suporte é de velino, vélin d’Arches.

Picasso não se repetiu, os faunos têm fisionomia distinta. Porém, há elementos comuns a todas as composições da série e o que mais me atraiu foi, além da plástica, a unidade do conjunto.

O fauno é uma divindade campestre, que remete para o contacto com a natureza e que simboliza a fertilidade e a boa fortuna. Evoca, afinal, o contentamento que o universo mediterrânico gerava em Picasso.

Na coleção em apreço, gostei, em particular, da Cabeça de Fauno Verde, que exibe geometrias simples e proporcionadas na construção do rosto e das orelhas.

Pablo Picasso, Cabeça de Fauno Verde (Museu Picasso, Antibes)

2.3. As naturezas‑mortas geométricas, de 1946, não dão corpo a uma série proprio sensu, mas formam, ao menos na mente de quem as vê, um núcleo coerente.

Em Natureza‑Morta com Fruteira, Quatro Ouriços‑Marinhos e Garrafa, esta é representada por dois losangos.

Quanto à Natureza‑Morta com Fruteira e Uvas, Guitarra e Prato com Duas Maçãs, os bagos convertem‑se numa elipse e as maçãs são reduzidas a círculos.

Mercê dos processos de simplificação e de geometrização, por vezes torna‑se difícil identificar aquilo que se vê. Na segunda natureza‑morta referida, quem diria que o triângulo azul evoca uma fruteira e que o objeto colocado no centro da composição é uma guitarra?

Apesar do recurso aos ditos processos, o real nem sempre desaparece, ele mostra‑se, por exemplo, nos quatro ouriços‑marinhos da primeira tela.[2]

Pablo Picasso, Natureza‑Morta com Fruteira, Quatro Ouriços‑Marinhos e Garrafa (Museu Picasso, Antibes)
Pablo Picasso, Natureza‑Morta com Fruteira e Uvas, Guitarra e Prato com Duas Maçãs (Museu Picasso Antibes)

2.4. Não ficam sem referência os óleos, pintados em outubro e em novembro de 1946, que, tal como as naturezas‑mortas geométricas, não definem uma sequência em termos formais, mas que, inspirados nas pessoas (pescadores e outros embarcadiços, nomeadamente) que o artista via em Antibes e em Golfe‑Juan, compõem um globo.

Saliento Pescador Sentado à Mesa e O Devorador de Ouriços‑Marinhos. Picasso vestiu‑os com as camisolas às riscas usadas nas referidas paragens do Sul da França e, através da desconstrução que levou a cabo e da posterior arrumação dos membros do corpo, logrou transmitir a índole vivaz daquela malta e, no segundo caso, também o apetite do glutão.

Pablo Picasso, Pescador Sentado à Mesa (Museu Picasso, Antibes)
Pablo Picasso, O Devorador de Ouriços‑Marinhos (Museu Picasso, Antibes)

3. Depois de sairmos do museu, vimos criaturas nas quais, de novo, observei falta de modos e pressenti dureza da moleira. Pouco me importei. Por graça da arte picassiana, isso representava, no meu espírito, um ilhéu de desagrado num mar de contentamento e de impressões felizes.


[1] Cf. LANTERI, Laure, in AAVV, Musée Picasso – Antibes. Un guide des collections, direção de Jean‑Louis Andral, edição revista e corrigida, Paris, Éditions Hazan, 2019, pp. 48‑50.  

[2] Cf. LANTERI, Laure, in AAVV, Musée Picasso – Antibes. Un guide des collections, direção de Jean‑Louis Andral, edição revista e corrigida, Paris, Éditions Hazan, 2019, p. 67.

Etiquetas: ,