Décimo terceiro texto de uma série baseada na viagem, devotada ao património cultural, que fiz no Sul da França (Costa Azul e Provença) durante o verão de 2025
1. Marc Chagall (Vitebsk, 1887 – Saint‑Paul‑de‑Vence, 1985) leu a Bíblia com afinco, a fé que sentia foi incunábulo de parte significativa da sua obra.
O presente texto versa sobre os três quadros do artista, pintados entre 1960 e 1966, que estão expostos no Museu Nacional Marc Chagall e que ilustram passagens do Êxodo: Moisés e a Sarça Ardente, O Batimento na Rocha [por Moisés] e Moisés Recebendo as Tábuas da Aliança. E também sobre o grupo de cinco óleos postos na tela entre 1957 e 1966, com arrimo no Cântico dos Cânticos, patentes ao público no mesmo museu. Pontuarei o escrito com notas de cariz pessoal.
2. Os trabalhos que ilustram fragmentos do Êxodo
Moisés e a Sarça Ardente (1960‑1966)

A leitura da imagem segue a ordem hebraica, da direita para a esquerda. Moisés, apascentando o rebanho do seu sogro, deparou‑se com o anjo do Senhor, aparecido numa silva que ardia sem se consumir. Aí falou o Todo‑Poderoso com Moisés, confiando‑lhe a missão de libertar os filhos de Israel que gemiam sob o peso da escravidão no Egipto.
À esquerda, Chagall figurou a travessia do mar Vermelho. Moisés avança, encabeça a fila de judeus, rumo à terra em que corre leite e mel. Atrás deles, a onda que evoca a nuvem divina protege‑os, impedindo a progressão do exército do faraó.
Recordei‑me do exemplo de Moisés enquanto observava o óleo em apreço. Ele foi criado na corte egípcia, não lhe faltava nada, recebeu boa educação, beneficiava de um estatuto privilegiado. Tornou‑se pastor, desceu no elevador social. Assim, com modo de vida semelhante ao dos que haveria de guiar, se habilitou a exercer as suas responsabilidades futuras. Eu trabalhei no torrão luso, aí me movia num meio tacanho — cercado de tontos, homens só até ao joelho — que, no entanto, outorgava boa condição social. Emigrei, no que aparentava ser (não era) uma queda estamental e tornei‑me muito mais feliz.
Outrossim, um indivíduo‑vómito montou um esquema tendente a reprovar‑me nas provas de doutoramento. Vivi situação bicuda, mas, como Moisés perante as dúvidas e as queixas dos filhos de Israel (cf. Êxodo, 14, 11‑14), guardei a confiança na boa intervenção da Providência. Isso ajudou‑me.
O Batimento na Rocha [por Moisés] (1960‑1966)

A travessia do deserto até à Terra Prometida era longa, a fome e a sede afligiam os judeus. O castanho simboliza a aridez da paisagem. Moisés bate na rocha de Horeb e dela sai água para o povo beber. Um arrebol e um claror, manifestações da presença do Pai Eterno, surgem por trás do profeta.
O episódio ora descrito — respigado no capítulo 17 do Êxodo — evidencia a importância de manter a confiança e a fé, mormente quando os ventos não sopram de feição.
Moisés Recebendo as Tábuas da Aliança (1960‑1966)

A exemplo do que sucede na pintura barroca, a composição apresenta elementos distribuídos em diagonal. Moisés, em primeiro plano, eleva‑se para receber as Tábuas da Aliança. Alguns judeus esperam por ele, outros dedicam‑se à adoração do Bezerro de Ouro. A mancha amarela sugere a luz vinda de Deus.
Os filhos de Israel — ingratos, voltam as costas ao Altíssimo e passam a adorar um bezerro, ao qual oferecem sacrifícios — fazem‑me lembrar os povos de cabeça dura que, mesmo depois de terem sido liderados por um déspota, continuam a votar nele e naquilo que ele representa: essa grei brinca com a sua sorte e com o fogo.
3. O conjunto de quadros que se reporta ao Cântico dos Cânticos
Destes manufatos ressaem a cor viva, o casal de protagonistas e Jerusalém, que por vezes arremeda Vitebsk, a terra natal do artista. No que à paleta cromática diz respeito, predominam o vermelho e o rosa, adequados para chamar o amor e a sua dimensão carnal, presentes no Cântico dos Cânticos, e ainda o drama, o sangue e o abuso de poder. Para protagonizar o raconto, Chagall escolheu, no lugar de Salomão e da sulamita, o rei David e Bersabé — com o intuito de ficar com ela, David enviou o respetivo marido para a guerra, de jeito que ele morresse (cf. o Segundo Livro de Samuel, 11, 15‑17).
Apreciei, sobretudo, O Cântico dos Cânticos II — a mulher nua, feliz e relaxada, parece baloiçar ao ritmo da copa de árvore em que se deitou — e O Cântico dos Cânticos IV — montados num cavalo alado, David e Bersabé sobrevoam Jerusalém.


O Cântico dos Cânticos é um poema de amor, mas foi visto, no cânone judaico, como símbolo do amor de Deus por Israel e, no cânone cristão, como sinal do amor de Cristo pela alma humana ou pela Igreja.
Nas versões anotadas da Bíblia que consultei, o livro em apreço é interpretado de modo a vincular as relações sexuais ao casamento. Essa visão acha‑se desfasada da realidade e corre a par de uma certa obsessão da Igreja Católica pelo desejo dos fiéis. O erotismo e o sexo são do mais belo e natural que o ser humano conhece, mal fora se estivessem subordinados ao laço do matrimónio (seriam interditos, desde logo, aos gays nas geografias onde o casamento entre eles não é permitido).
4. Como acontece nas telas relativas ao Génesis, também naqueloutras fundadas no Êxodo e no Cântico dos Cânticos a cor ajuda a criar adesão à imagem e ao universo bíblico. As obras de Chagall constituem, na verdade, uma teofania.