No Museu Nacional Marc Chagall, em Nice (I)

Décimo segundo texto de uma série baseada na viagem, devotada ao património cultural, que fiz no Sul da França (Costa Azul e Provença) durante o verão de 2025

1. Marc Chagall (Vitebsk, 1887 – Saint‑Paul‑de‑Vence, 1985) recebeu o sopro de diversos movimentos artísticos — o surrealismo, por exemplo —, mas desenvolveu um universo pictural próprio, singular e fantástico. Foi leitor interessado da Bíblia, a fé que sentia marcou a sua empresa.

É um dos santinhos do meu altar artístico, adoro a paleta cromática que utilizou, em especial os azuis, os verdes e os vermelhos, todos com uma saturação agradável à vista.

No Museu Nacional Marc Chagall, em Nice, avultam os 17 óleos que formam A Mensagem Bíblica. Doze ilustram o Génesis e o Êxodo, os restantes cinco, de menor dimensão, fixam‑se no Cântico dos Cânticos. Abalado pelo Holocausto e por este ter deixado o ídiche perto da extinção, o mestre — nascido no seio de uma família hassidista da Europa de Leste — desenvolveu, nos anos cinquenta e sessenta do século passado, uma obra significativa ancorada na Bíblia.

Porquanto me fascinou o que vi no museu, decidi espraiar por dois escritos as impressões advenientes da minha visita ao local. Assim poderei mostrar ao leitor um número razoável de fotografias que lá tirei e ganharei espaço para pontuar o texto com reflexões que, no meu espírito, o escrito sagrado suscitou.

2. Nesta deposição, cingir‑me‑ei aos nove quadros que evocam o Génesis: A Criação do Homem (1956‑1958), O Paraíso (1961), Adão e Eva Expulsos do Paraíso (1961), A Arca de Noé (1961‑1966), Noé e o Arco‑Íris (1961‑1966), Abraão e os Três Anjos (1960‑1966), O Sacrifício de Isaac (1960‑1966), O Sonho de Jacob (1960‑1966) e A Luta de Jacob com o Anjo (1960‑1966).

A Criação do Homem

Marc Chagall, A Criação do Homem

No registo inferior da composição, um anjo que emerge das águas primordiais carrega Adão. Debaixo do corpo deste, uma serpente enrolada anuncia o pecado original.

No registo superior, um sol giratório parece acionar, durante os seus movimentos de rotação, diversos episódios bíblicos. O Cristo crucificado usa um talit, ele é, na perspetiva de Chagall, o judeu martirizado, não o Messias dos cristãos.

A criação não é dado científico, abre margens de interpretação que Chagall aproveitou para produzir uma peça de truz.

Visto que hoje se nota tanto a falta de empatia, assinale‑se que Deus não precisava de criar o humano, fê‑lo porque quis e qui‑lo porque o Pai Eterno é amor e empatia, e estes só se realizam, na sua plenitude, desde que exista outrem, a amar e credor de empatia.

O Paraíso e Adão e Eva Expulsos do Paraíso

Marc Chagall, O Paraíso

N’O Paraíso, Chagall figurou o berço de Eva e a tentação. Acima de Adão — que tem um dos braços sobre a cabeça — está uma nuvem da qual saiu Eva: eis o jeito de mostrar que a primeira mulher foi criada a partir da costela do primeiro homem. Aos misóginos, amiúde com a Bíblia em riste, vale a pena lembrar que Deus não criou a mulher a partir dos pés ou das partes baixas de Adão, mais um motivo para a respeitar.

Noutra parte da tela, Adão e Eva aprestam‑se para partilhar o fruto proibido (o da árvore do conhecimento do bem e do mal) e, dessarte, para quebrar a sua relação de confiança com o Altíssimo.

Em Adão e Eva Expulsos do Paraíso, um anjo portador da ira divina ordena a Adão e a Eva que saiam do Éden. E eles fazem‑no montados num galo vermelho, símbolo de vitalidade e de fertilidade. O desenho da maternidade — no canto inferior direito — transmite, porém, uma visão otimista: o ser humano sobreviverá, os descendentes do casal procurarão cumprir os desígnios de Deus.

Marc Chagall, Adão e Eva Expulsos do Paraíso

A Arca de Noé e Noé e o Arco‑Íris

Marc Chagall, A Arca de Noé

Despedaçaram‑se as fontes do oceano, abriram‑se as comportas do céu e as águas do Dilúvio invadiram A Arca de Noé, que o artista representou a partir de dentro do objeto contentor. Uma das crianças que ali se encontram forma, com os braços, uma cruz — talvez seja alusão à vida de Cristo. A construção em círculo a partir do centro gera uma impressão de profundidade incomum no trabalho de Chagall.

O fim do Dilúvio marcou o início de uma fase da história da Humanidade. O arco‑íris foi o sinal — da aliança com todos os entes vivos — que Deus enviou. Em Noé e o Arco‑Íris, o arco é branco. O velho Noé, o justo que o Todo Misericordioso não esqueceu, observa. Um anjo vestido de amarelo, mas com uma asa vermelha, anuncia as venturas decorrentes da aliança e também as desgraças que se abaterão sobre os Judeus, explicitadas através de gente aflita e de casas em chamas.

Marc Chagall, Noé e o Arco‑Íris

Os trechos bíblicos em que Chagall se inspirou motivam reflexões assaz pertinentes nos nossos dias. O Dilúvio foi um castigo, uma consequência da disseminação do pecado. Quando este cria raízes na vida em comum, fala‑se de «pecado social». O neoliberalismo, a ascensão da extrema‑direita e a amplificação da violência na esfera pública têm trazido consigo a prática desse género de pecado, em extensão e em intensidade.

Atente‑se em três pecados sociais: racismo; distribuição iníqua da riqueza, designadamente entre os que contribuem para a criar; exploração de quem trabalha. Cingindo‑me ao torrão luso, noto que o fosso entre ricos e pobres não para de aumentar, o pacote laboral do Governo constitui um ataque aos direitos da classe trabalhadora e, mercê da ação do Chega e de outros partidos, a xenofobia normaliza‑se.

Os responsáveis por semelhante estado de coisas não hesitam em apregoar a Bíblia. O seu lema deveria ser: «Faz o que eu digo que está na Bíblia, não faças o que realmente lá está.»

Abraão e os Três Anjos

Marc Chagall, Abraão e os Três Anjos

Três anjos, mensageiros do Criador, comunicam a Abraão e a Sara, já idosos, que vão ter um filho. Sara já nem sequer tinha as regras, a mensagem é clara: para Deus, nada é impossível.

O Sacrifício de Isaac

Marc Chagall, O Sacrifício de Isaac

Consoante havia prometido ao Pai do Céu, Abraão prepara‑se para sacrificar o filho, que seria consumido pelo fogo. No entanto, o Anjo do Senhor aparece e, certo de que Abraão teme a Deus, diz‑lhe para não dar sequência ao ato preliminar.

A imagem é forte. Mesmo antes do momento capital, Abraão já está tingido de vermelho que lembra o sangue. Outrossim, por via de um episódio do martírio que precedeu a morte de Cristo, Chagall chamou as desgraças que se abateriam sobre o povo judeu.

O Sonho de Jacob e A Luta de Jacob com o Anjo

Marc Chagall, O Sonho de Jacob

No lado esquerdo de O Sonho de Jacob, este vê, em sonho, anjos a subir e a descer uma escada, que liga céu e terra. Deus revela‑se a Jacob e confirma a aliança estabelecida com Abraão, cujos tópicos incluem bênçãos, terras e descendência. No lado direito, um anjo traz uma menorá, cujo brilho ilumina o quadro noturno e simboliza a esperança na mensagem do Padre Eterno.

Em A Luta de Jacob com o Anjo, o patriarca prostrou‑se diante do adversário mal reconheceu quem combatia. O anjo semelha abençoá‑lo, tocando‑lhe na testa. Nas margens do quadro, o artista desenhou cenas da vida de Jacob: é tocante aquela em que, desgostoso, ele se aconchega com a túnica do filho, José, que pensava ter sido devorado por uma fera.

Marc Chagall, A Luta de Jacob com o Anjo

3. Desse jeito, que tanto me apraz, Chagall percebeu e pintou o Génesis. Através do emprego da cor, e pela sensibilidade plástica que revela, o mestre convida o observador dos seus quadros a entrar no universo bíblico, no reino do sagrado. Fá‑lo de forma bem mais eficaz do que os pregadores armados de discursos moralistas e enfadonhos.

Na próxima deposição, falarei dos seus óleos baseados no Êxodo e do conjunto de pinturas relativo ao Cântico dos Cânticos.

Marc Chagall, O Paraíso (pormenor)
Marc Chagall, Adão e Eva Expulsos do Paraíso (pormenor)
Marc Chagall, A Luta de Jacob com o Anjo: o patriarca está desolado, pensava ter perdido o filho, José
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