No Museu Nacional Fernand Léger, em Biot

Primeiro texto de uma série baseada na viagem, devotada ao património cultural, que fiz no Sul da França (Costa Azul e Provença) durante o verão de 2025

 1. A luz e os outros encantos da Costa Azul exerceram poder de atração sobre muitos artistas. No caso de Fernand Léger (Argentan, 1881 – Gif‑sur‑Yvette, 1955), o íman foi a cerâmica, o savoir‑faire dos oleiros de Biot, a vontade de modelar a argila. Meses antes de morrer, comprou um pedaço de terra nessa localidade, nele funciona hoje o Museu Nacional Fernand Léger, inaugurado anos após a sua morte. O respetivo acervo inclui trabalhos de género diverso, sempre com mão de Léger: pintura, desenho, cerâmica, tapeçaria, mosaico, escultura.

Frontaria do Museu Nacional Fernand Léger

2. Nas obras produzidas entre 1902 e 1908 — o artista destruiu a maioria delas —, Léger deu uso à lição impressionista.

Depois, em Montparnasse, recebeu o sopro dos mestres com quem se relacionou, nomeadamente Georges Braque e Pablo Picasso, e desenvolveu o seu próprio estilo cubista — o tubismo — mediante recurso, na pintura, a formas tubulares.

Léger trilhou os caminhos do abstracionismo. Libertou‑se do motivo tradicional — o personagem, a paisagem — e, de certo modo, reorganizou‑o empregando o elemento geométrico e a cor viva. A sua pintura passou a assentar nos contrastes entre cores e entre linhas retas e linhas curvas: a cor oferecia o confronto, o lineamento intensificava‑o.

Mesmo quando representou figuras humanas, Léger empregou o padrão geométrico para debuxar o respetivo corpo. Tal é patente em O Almoço (1921).

Fernand Léger, O Almoço, óleo sobre tela (Museu Nacional Fernand Léger)

A minha companheira, uma fotógrafa com predileção pelo ser geométrico, depressa ficou magnetizada por aquilo que viu no museu de Biot.

A seguir à Primeira Guerra Mundial, Léger inspirou‑se na vida urbana e no universo da civilização industrial, em particular nos engenhos técnicos. A isso não será estranha a circunstância de ter visto diferentes tipos de peças de artilharia no período em que cumpriu serviço militar integrado em tropas que participaram na contenda. Caraterísticos da empresa que então levou a cabo são os quadros O Grande Rebocador (1923) e Elemento Mecânico sobre Fundo Vermelho (1924).

Fernand Léger, O Grande Rebocador, óleo sobre tela (Museu Nacional Fernand Léger)

Nos anos trinta do século xx, influenciado pelo biomorfismo, Léger afastou‑se da chapa reta e rigorosa, bebeu nas tonalidades e nos traços sinuosos do mundo vegetal e do mundo animal, regressou em força à figura humana — ainda que a contrapusesse a coisas que já havia pintado e que a considerasse simples objeto. Outrossim, caprichou na feitura destinada ao espaço público, cuidou de oferecer criações de qualidade que fossem chamativas, interessantes e inteligíveis para todos. Disso é bom exemplo Adão e Eva (1935‑1939), tela de grandes dimensões integrada na Kunstsammlung Nordrhein‑Westfalen de Dusseldórfia: Adão ostenta uma tatuagem e veste o que parece ser um fato de banho, com listas azuis e brancas. No óleo‑estudo de 1934 disponível no museu de Biot, Adão não está tatuado.

Fernand Léger, Adão e Eva, óleo sobre tela (Kunstsammlung Nordrhein‑Westfalen). Fui buscar a imagem a https://sammlung.kunstsammlung.de/de/werke/86

Durante a Segunda Guerra Mundial, Fernand Léger viveu nos Estados Unidos, interessou‑se pelos contrastes e dissonâncias que aí percebeu e ideou, designadamente, as séries Os Ciclistas e Os Mergulhadores.

Voltou à França em 1945, aderiu ao Partido Comunista Francês, valorizou a condição operária. Representou os trabalhadores no meio em que desenvolviam a sua atividade e — para Léger, tópico de suma relevância — mostrou‑os felizes a gozarem o seu tempo de ócio, símbolo de progresso cívico e social. De novo, insistiu na ideia de uma arte acessível a Monsieur Tout‑le‑Monde.

Fernand Léger, Composição com Dois Marinheiros (1951), óleo sobre tela (Museu Nacional Fernand Léger)

A partir de 1949, deslocou‑se amiúde a Biot e aí, em colaboração com o ateliê Brice, entregou‑se ao baixo‑relevo (atente‑se em Mulheres com Papagaio, de 1952) e à escultura de cerâmica. Concebeu, designadamente, peças que gostaria de ver expostas em espaços sob céu aberto, a eles almejava levar o seu festim de cores.

Fernand Léger/Roland Brice (ceramista), Mulheres com Papagaio, terracota esmaltada (Museu Nacional Fernand Léger)

3. No trabalho do artista em apreço, é evidente a atração sentida pelo universo industrial, por instrumentos e engrenagens, pelo cotejo do homem com a máquina. Como representaria Léger o homem ante as consequências da revolução digital? De que jeito mostraria a inteligência artificial e a sua capacidade de gerar inteligências artificiais cada vez mais poderosas? Que imagem daria ele do humano e da margem de decisão a este deferida no futuro?


Fernand Léger, Elemento Mecânico sobre Fundo Vermelho, óleo sobre tela (Museu Nacional Fernand Léger)
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