Na Praça Estanislau e no Museu de Belas‑Artes de Nanci

Imagem da Praça Estanislau

1. A vida ensinou‑me que quase todos os juízos são circunstanciais. Ainda que tal não se espere no momento em que são formulados, eles consomem‑se na fogueira do tempo. Quando se viaja, isso torna‑se evidente: aquele que se acreditava ser o ponto mais pitoresco do mundo depressa dá lugar a outro, o nec plus ultra do arrebatamento é, afinal, um limite ultrapassável. Vale então o que vale, o que a seguir direi. A Praça Estanislau, em Nanci, é uma das mais graciosas da Europa e, vista de noite, é a mais bonita que conheço no nosso velho continente. Não é só uma questão de formas e de matérias, é também o jogo de luzes e a tonalidade da iluminação, é o equilíbrio ático que daí resulta.

Retangular, a place Stanislas faz parte de um complexo urbano setecentista. Através dela pretendia Estanislau Leszczyński, duque da Lorena e de Bar e promotor da sua criação, prestar tributo a Luís XV, seu genro e rei da França, e também ligar o núcleo velho de Nanci, de cariz mediévico, à parte nova da cidade, de feição renascença.

Delimitam‑na edifícios imponentes e, num dos lados e por razões (datadas) do foro militar, basses faces, imóveis de um só piso. Os ângulos da praça ficaram abertos, em todos eles foram erguidos portais e gradeamentos de ferro forjado, com ornamentos dourados. À beira das construções de pedra, essas estruturas de metal induzem contraste feliz e trazem ligeireza refinada ao rossio.

As fontes existentes em dois dos quatro ângulos têm rico arreio escultórico. Numa delas prepondera a figura de Neptuno, noutra a de Anfitrite. A composição das fontes propõe uma leitura piramidal que dirige o olhar para as flores‑de‑lis visíveis na parte superior dos portais. A flor‑de‑lis é símbolo da realeza de França.

No centro da praça, Estanislau, representado em escultura, aponta, usando o dedo, para o medalhão com o busto de Luís XV que ornamenta o alto de um arco triunfal situado nas proximidades. Inicialmente, o terreiro, então place Royale, tinha uma estátua de Luís XV. Na sequência da Revolução Francesa, retiraram‑na dali e o largo foi rebatizado, passou a ser a place du Peuple. Só em 1831 ganhou o seu topónimo atual e lá colocaram a imagem do duque da Lorena.

A Praça Estanislau, especialmente durante a noite, tem um encanto distintivo. Vai tudo dito na frase sem pretensão que topei numa página web: «Coisa linda! A gente nem sabe pra que lado olhar!»

Imagem da Praça Estanislau

2. O Museu de Belas‑Artes de Nanci fica na Praça Estanislau. O seu acervo congrega arte europeia, da Idade Média aos nossos dias, peças que revelam o engenho de Jean Prouvé, arquiteto e desenhador de móveis que associou a funcionalidade à economia de meios, e ainda uma coleção importante de feituras da vidraria Daum, empresa de referência na aplicação dos conceitos da arte nova que ainda hoje produz aprimorados objetos de material hialino.

Gosto de realçar o trabalho de quem tem ou teve vínculo às regiões que visito, é esse o caso de dois autores, representados no museu, acerca dos quais falarei: Claude Gellée e Francis Gruber.

Claude Gellée, o Loreno [1600 (?)‑1682], desenvolveu o grosso da sua carreira em Itália. Dedicou‑se ao paisagismo num tempo em que este ainda era um género de segunda ordem. Mesmo quando pintou episódios mitológicos, bíblicos ou históricos, na tela é o respetivo palco que sobressai, as figuras humanas são, por norma, de pequena dimensão. Porquanto se trata de um paisagista, não admira que o tópico precípuo nos seus quadros seja a luz, os trabalhos de Gellée resultam do estudo aturado da luz, a qual acaba por transmitir aura poética à composição. No Museu de Belas‑Artes de Nanci, ilustra‑o a obra Cena de Combate Perto de Uma Fortaleza.

A propósito da paisagem, registe‑se que Gellé não reproduzia ad amussim aquilo que observava, ele colhia inspiração no cenário concreto e, em busca de um ideal, modificava‑o.

Francis Gruber veio ao mundo em Nanci, em 1912, e morreu em 1948. As doenças de que padecia e os horrores da Segunda Guerra Mundial isolaram o artista no seu ateliê e converteram‑no em pintor do sofrimento, da figura martirizada. Se os vitrais de seu pai — Jacques Gruber, um dos vultos da Escola de Nanci — primavam pela louçania e pela sugestão de boa fortuna, os motivos escolhidos por Francis, em particular no último decénio da sua vida, denunciam existências varadas pela inquietação.

Disso é exemplo o autorretrato patente no museu, de 1942. Num cenário despojado, o do seu estúdio, vê‑se uma paleta abandonada no chão e o artista, que veste roupas excessivamente folgadas, parece estar prestes a retirar uma tela do cavalete, assim insinuando que tudo acabou.

Museu de Belas‑Artes de Nanci, autorretrato de Francis Gruber

Os tesouros que, no Museu de Belas‑Artes de Nanci, mais prenderam o meu tento não são, porém, de autores lorenos. Entre eles, contam‑se as pinturas a óleo e a cera de Djamel Tatah, artista franco‑argelino que nasceu em 1959, e a escultura de 1896 intitulada A Miséria, de Jules Desbois.

As primeiras evidenciam o tipo de composição que Tatah vem utilizando. De formato avultado e fundo monocromático, em cada uma delas impera uma figura humana, em tamanho natural. Essa personagem anonimizada dá ares de viver fechada no seu universo e de carregar consigo o peso de uma biografia molesta. Ela anda ali, à vista de quem passa, mas não se sabe onde mora o seu pensamento, o seu espírito. Os respetivos pés foram excluídos da composição, o que ajuda a promover a ideia de uma criatura que levita, alheia ao mundo. A tela não só não revela contextos, como parece dizer que não há contexto nenhum. O arranjo de outros quadros de Tatah, que não se encontram no museu em pauta, inclui vários seres humanos, mas não os põe em inter‑relação.

Por força do tema e da sua repetição, obsessiva e obsidiante, as obras de Djamel Tatah provocam incómodo, sugerem a ausência de alternativa a uma vida de solidão e de sofrimento.

Museu de Belas‑Artes de Nanci, dois quadros de Djamel Tatah

Jules Desbois (1851‑1935) distinguiu‑se como escultor. Trabalhou a pedra, o bronze, a madeira, o gesso e, no âmbito das artes decorativas, também o estanho. À semelhança de Rodin, que auxiliou durante algum tempo, e de Camille Claudel, Desbois efigiou a velhice, associando‑a à decrepitude. Esculpiu diversas versões de A Miséria, entre as quais a de madeira que se encontra exposta no Museu de Belas‑Artes de Nanci — é uma modelação forte da anosidade e do infortúnio que ela implicava, a reprodução de uma macróbia amargurada, de poucas carnes e pele engelhada, com músculos e articulações nodosos.

Hoje, tempo de ancianias felizes e cheias de vitalidade, teria Desbois recorrido à mesma figuração?

Museu de Belas‑Artes de Nanci, A Miséria, de Jules Desbois

Aconteceu‑me coisa curiosa. Por irritação de ordem estética, conjugada com o desconhecimento do género, revi e passei bastante tempo defronte de um conjunto de quatro caprichos de Gherardo Poli, pintor que nasceu no século xvɪɪ e morreu na centúria seguinte (face às divergências constantes das fontes que consultei, prefiro não indicar anos).

Numa das suas modalidades, o capricho é uma pintura na qual está representada uma paisagem com ruínas imaginadas pelo autor do quadro. As obras de Poli à mostra no museu pertencem a essa categoria e nelas prevalece o elemento arquitetónico — é dizer, as ruínas —, de marcado verticalismo, e também as estátuas. Já as figuras humanas, de acanhada estatura, parecem simples objetos decorativos. O volume das ruínas e das estátuas é desproporcionado relativamente ao tamanho das pessoas. E eu, que não gostei das composições em causa, acabei por me sentir preso a elas. Uma estranha pena de detenção.

Museu de Belas‑Artes de Nanci, capricho de Gherardo Poli

Sou feminista, encareço as mulheres e trato bem a minha companheira. No entanto, cuido em não cair no excesso de denguice, que tampouco espero dela.

Pouco depois de chegar a Bruxelas, admiti interessar‑me por uma mulher que aí conheci, uma balzaquiana linda e detentora dum corpo de estalo, e convidei‑a para almoçar comigo. Ainda hoje, decorridos 15 ou 16 anos, me lembro de quão mal me senti durante a refeição. A senhora, portuguesa, era burra, mas o que mais me importunou foram os seus modos xaroposos e o uso a torto e a direito de sufixos diminutivos.

Vem isto a respeito de um casal que andou perto de mim durante parte do percurso expositivo e que logrou distrair a minha atenção. O homem aproveitava cada comentário dela e todo o pormenor das obras do acervo para, melosamente, se insinuar e lhe dirigir um galanteio. E a dama, que nem era boba, permitia‑lho. Mesmo sabendo que nas arenas da sedução nem sempre less is more, achei aquilo indigesto.


Dois quadros de Djamel Tatah (pormenor)
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