Miguel Torga, O Doiro, Vindima e o poema S. Leonardo de Galafura

Sétimo texto da série Autores que Cantaram o Douro

Miguel Torga (São Martinho de Anta, concelho de Sabrosa, 1907 – Coimbra, 1995) cantou o Douro em poesia e em prosa. Aqui deixo nótulas acerca dos seus poemas de inspiração duriense, do romance Vindima (1945) e de O Doiro, um dos fragmentos da coletânea Portugal, publicada pela primeira vez em 1950.

Em O Doiro, Torga diz multum in parvo. Num texto curto, provido de imensa força falante, depõe a grandeza do elemento físico e não foge à consideração do elemento humano. Com os lúzios no rio e na região duriense, o autor torna‑os únicos, excecionais na sua magnificência, no seu significado, na dimensão do que sente e sofre quem lá labuta.

«Patético, o estreito território de angústia, cingido à sua artéria de irrigação, atravessa o país de lado a lado. E é, no mapa da pequenez que nos coube, a única evidência incomensurável com que podemos assombrar o mundo.»[1] Vivo e trabalho em Bruxelas, aqui lido com pessoas de diversos países que, vezes sem conto, cavaqueiam comigo a propósito das suas férias em Portugal. No passado, elas distinguiam Lisboa e o Douro. Entretanto, a capital soçobrou à turistificação e agora é o Douro que rutila nas respetivas palavras e expressões. Calha, pois, afirmar que tanto o dr. Adolfo Rocha, otorrinolaringologista, como Miguel Torga, o escritor, faziam o diagnóstico certo.

A trama de Vindima começa com o apalavramento dos que viriam a compor uma roga em Penaguião e com a andada dessa gente rumo à Cavadinha, a quinta onde os esperavam para vindimar, e termina, cerca de duas semanas depois, com o seu regresso a Penaguião.

O grosso do enredo desenrola‑se em duas propriedades, a dita Cavadinha, que pertence a um bronco tirânico e mesquinho, o Lopes, e a Junceda, senhorio dos Meneses, família de alta estirpe. Por lá se alinham o nascimento e a morte, a nobreza de caráter, a maldade, a vaidade, a exploração do aguante humano, a beatice e a repressão do desejo sexual.

A roga chegava à Cavadinha antes do patrão e, na receção inicial, um dos que a integravam tinha mesmo de limpar as botas dele.

Através, designadamente, do olhar de Alberto, um homem com sensibilidade social que fazia parte da casta dos privilegiados, Torga mostrou quão necessário era levar a cabo transformações de cariz social que melhorassem a vida dos que eram obrigados a vender a sua força de trabalho. Revi‑me em Alberto, não apenas mercê da sua atenção para com os que mourejavam e recebiam paga indigna, mas também por ele se achar medularmente apartado do seu pai, o hediondo Lopes.

Vindima é obra datada. No entanto, continua a merecer leitura, no mínimo pela escrita de alto calibre, por pôr a drapejar a bandeira do trabalho digno, pelo retrato de personagens e de classes sociais. O dr. Bruno, por exemplo, «Mentia com a cínica serenidade de quem via nos outros simples instrumentos. Espelhos onde se contemplava, que, casualmente, eram pessoas. Não lhe pedissem sinceridade, se chamavam a isso abrir o coração à fiança, pô‑lo às ordens de causas alheias. A que título exigiriam dele tal generosidade? Não. Amava‑se em cada mulher, falando‑lhe de amor»[2].

Hoje, as fainas são distintas e são outras as circunstâncias em que decorrem. Porém, permanece válido o sumo da crítica social dirigida a esses fundos negros do Estado Novo: continua a haver desabalado abuso da operosidade doutrem. E se o compatrício o não aceita, recorre‑se ao braço estrangeiro. A exploração de quem trabalha — assim como de quem busca casa para viver — deveria brocar os espíritos, ela evidencia defeito de ordem moral no percurso da humanidade.

O escritor socialmente comprometido de Vindima desaparece nos poemas torguianos de inspiração duriense[3]. O romancista que tomava o partido dos trabalhadores espezinhados e que alvitrava transformações sociais dá lugar ao vate observador, os seus versos são destituídos de intuitos de agitação e de mudança. Atente‑se, por exemplo, em S. Leonardo de Galafura, de outubro de 1961. Para aqui o transcrevo e com ele termino o presente texto:

À proa dum navio de penedos,

A navegar num doce mar de mosto,

Capitão no seu posto

De comando,

S. Leonardo vai sulcando

As ondas

Da eternidade,

Sem pressa de chegar ao seu destino.

Ancorado e feliz no cais humano,

É num antecipado desengano

Que ruma em direcção ao cais divino.

Lá não terá socalcos

Nem vinhedos

Na menina dos olhos deslumbrados;

Doiros desaguados

Serão charcos de luz

Envelhecida;

Rasos, todos os montes

Deixarão prolongar os horizontes

Até onde se extinga a cor da vida.

Por isso, é devagar que se aproxima

Da bem‑aventurança.

É lentamente que o rabelo avança

Debaixo dos seus pés de marinheiro.

E cada hora a mais que gasta no caminho

É um sorvo a mais de cheiro

A terra e a rosmaninho!


[1] TORGA, Miguel, Portugal, 13.a edição (5.a edição na Dom Quixote no formato em causa), Alfragide, Publicações Dom Quixote, 2018, p. 37.

[2] TORGA, Miguel, Vindima, 4.a edição revista, Coimbra, edição do autor, 1971, p. 121.

[3] Cf. CABRAL, A. M. Pires, Por Esta Terra Adentro. Páginas Trasmontanas, 1.a edição, Lisboa, Âncora Editora, 2018, pp. 311‑314.

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