Décimo texto da série Autores que Cantaram o Douro
Ao meu primo João Bernardo, um humanista que será sempre um humanista
Mário Bernardes Pereira (Peso da Régua, 1897 – Porto, 1961) foi médico, escritor, autarca, exerceu cargos de direção no Instituto do Vinho do Porto e na corporação de bombeiros da terra que o viu nascer. Da sua pena saíram os romances Escravidão (1942) e A Quimera das Sete Vacas Gordas (1944), que versa sobre a exploração de volfrâmio em Trás‑os‑Montes.

Gostei de ler Escravidão, é obra na qual escrita de qualidade e estória bem urdida se associam.
Paulo é um esculápio em cujo peito bate coração humanista. Por mor do ofício, anda pelos cardenhos e conhece a miséria em que vive a arraia‑miúda duriense. Proprietário rural, tem ideias claras acerca da organização da lavoura. Vista ele a bata de médico ou o traje de terratenente, Paulo denota vontade franca de melhorar as condições em que decorre a existência dos outros, nomeadamente a dos desvalidos.
Paulo e Luísa (uma alma boa) amam‑se, mas, mercê de atos vis praticado por Genoveva, uma criatura perversa, é com esta que Paulo vem a casar. A relação conjugal em apreço fá‑lo infeliz, mas os seus escrúpulos empecem o divórcio. O drama amoroso que envolve esses três personagens está eivado de refolhos — e, diria mesmo, de fatalismos — que caraterizavam os amores de antanho. Hoje, desde logo porque são outros os meios de comunicação com a pessoa que é objeto de afeição e também porque o tempo liquefez certas mentalidades, tudo é diferente.
A terra duriense é o palco da trama de Escravidão. O meio pequeno acha‑se empeçonhado pela má‑língua, pela tacanhez, pelo atavismo que leva aqueles parranas a menoscabar o conselho médico, cientificamente fundado, e a dar ouvidos a charlatões.
Pelas páginas do livro, passam os negócios do vinho, as vindimas, a alegria e a cor que as rogas trazem, a aspereza das lides, a necessidade de melhorar a contrapartida de quem trabalha. E desfila a crise. A crise e o receio de não conseguir vender as uvas. Atualmente, sucede o mesmo. Progresso, progresso, mas em 2024 o Douro é cenário de uma tragédia social.
Remato com um trecho de Escravidão. Em certa medida, permanece válido o respetivo teor. «Parecia que, como os grandes pensadores, o Douro, vítima da excelência das suas produções, não podia viver sem sofrimento. Região seleccionada pela Natureza, digna de constituir a fortuna de um País, tinha arrastado, por desatenção dos Govêrnos, a sua desventura, e marcava no quadro da prosperidade social uma nódoa de atraso e de ruína!»[1]
[1] PEREIRA, Mário Bernardes, Escravidão, Porto, Livraria Simões Lopes (depositária), 1942, p. 328.