Segundo texto da série Autores que Cantaram o Douro
Manuel Mendes (Lisboa, 1906 – Lisboa, 1969) foi escritor, artista plástico e um empenhado opositor ao regime fascista.
O volume do Roteiro Sentimental que versa sobre o Douro, publicado pela primeira vez em 1964, reúne crónicas escritas entre 1961 e 1963. Mostra um autor arrebatado pela força telúrica da região duriense e um homem rendido aos que aí mourejavam — ao ler o fragmento inicial do livro, São Salvador do Mundo, logo isso se percebe.

Manuel Mendes aliou a verve à sensibilidade. Atente‑se neste trecho de São Salvador do Mundo: «O que aqui se vê, e além de ver vislumbra, fixa‑se para sempre na retina, prende‑se‑nos entranhadamente à alma, e ficará a vibrar numa impressão por vezes dolorosa e inesquecível.»[1] Senti‑lo‑á quem visitar terras do Douro e tiver um mínimo de delicadeza no espírito.
Em Douro Abaixo, Manuel Mendes soltou relato da viagem de três dias que fez, num barco rabelo, do Pinhão à Ribeira, no Porto. É muita, a nostalgia do escrevente — no que toca ao transporte das pipas, o rabelo já dera lugar ao comboio e à camioneta. Seja no Douro, seja onde for, tempus edax rerum e a prevalência do elemento funcional e utilitário mais se apura quando está dinheiro em causa.
Tocou‑me a triste história da jovem Fanny Owen (cf. Num Miradoiro da Estrada) e, no texto a ele devotado, achei bonita a evocação do Barão de Forrester. Em A Cheia, apreciei a descrição torrencial do fenómeno, imaginei‑me a ser levado pelo enxurro.
Fiquei a saber que a palavra «consoada» se referia, no seu significado originário, à refeição ligeira e sem carne tomada à noite nos dias de jejum (cf. A Consoada) e que a alheira foi criada pelos judeus, em Trás‑os‑Montes, como meio de iludir a Inquisição (cf. Em Louvor da Alheira). Visto que não comem carne de porco, os judeus não produziam nem defumavam enchidos que tinham o porco como ingrediente principal. A ausência de fumeiro em casa dava, pois, sinal de que ali habitava família judia. Os judeus começaram então a preparar um enchido com pão e com picado de outras carnes (vitela, galinha, peru, perdiz, coelho, lebre…) e assim deram nascença à alheira, cujo nome radica na utilização, como tempero, do alho.
A Vindima é texto escrito com carregada tinta neorrealista, repetem‑se as alusões à exploração dos que chegavam ao Douro para a faina em tempo de apanha das uvas. O Pedreiro é uma ode ao trabalho do alvenel que levantou e tão bem modelou os muros dos socalcos.
Não faltam, no livro, as referências a figuras do universo literário, a saber, Camilo Castelo Branco, Aquilino Ribeiro, Guerra Junqueiro e Raul Brandão. Em No Rasto de Camilo, é vívida a descrição que o autor faz de Camilo Castelo Branco, esse barril de mau génio e senhor de língua viperina que, para escapar a mais uma sova que lhe iriam dar em Vila Real, se refugiou na casa da irmã que residia na aldeia de Covas do Douro. Apreciei, em especial, Na Cantareira, o texto em que Manuel Mendes evoca Raul Brandão. De resto, Manuel Mendes não deslustra a família a que pertence o escritor da Foz do Douro, a família dos que, pela pluma, exprimiram preocupações sociais.
Em modo de síntese, direi que Roteiro Sentimental (Douro) é um pedaço de boa literatura que revela o assombro do seu autor diante da paisagem duriense e que assoalha o profundo respeito que ele tem por quem a converteu numa das maravilhas do nosso país.
[1] MENDES, Manuel, Roteiro Sentimental. Douro, Lisboa, Sociedade de Expansão Cultural, 1964, p. 16.
