José Rentes de Carvalho, Ernestina

Vigésimo quinto texto da série Autores que cantaram o Douro

1. José Rentes de Carvalho nasceu em Vila Nova de Gaia, em 1930. Estudou Línguas Românicas e Direito na Universidade de Lisboa. Por motivos políticos, abandonou Portugal. Viveu no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Nova Iorque e na cidade de Paris. Em 1956, fixou‑se em Amesterdão, onde se viria a licenciar e, entre 1964 e 1988, a ensinar literatura portuguesa. Depois, devotou‑se à escrita (romance, conto, crónica, ensaio, escrita biográfica, guia de viagem) e publicou textos em periódicos de diversos países (Portugal, Brasil, Bélgica e Países Baixos).

2. Ernestina, de 1998, é romance autobiográfico e obra na qual Rentes de Carvalho ficcionaliza a história da sua família. Ernestina, um dos protagonistas, é a mãe do autor. A ação decorre principalmente em Vila Nova de Gaia e em Trás‑os‑Montes e reproduz o quotidiano de muitas famílias portuguesas durante a primeira metade do século xx (e não só, porquanto, reportando‑me à segunda metade da centúria, vi no livro fragmentos do passado da minha própria família).

Ler Ernestina é visitar o Portugal atrasado desses tempos, aquele onde o destino da mulher era casar, ter filhos e cuidar da casa, a Igreja renitia na obsessão pelo sexo, a patriarquia gerava ambientes caseiros insuportáveis e a violência doméstica passava sem castigo.

Rentes de Carvalho apresenta alguns quadros do Portugal rural, eis um deles, cabonde representativo:

«A feira dos Gorazes, em Mogadouro, ainda se faz a 15 de Novembro, mas então durava três dias e era um dos grandes acontecimentos anuais da província. Semanas antes já de toda a parte acorriam rebanhos, manadas de vitelas e vacas, récuas de muares, os louceiros, os bufarinheiros, os pedintes, os saltimbancos, os músicos cegos, os adivinhos.

Aos Gorazes só não iam os entrevados e quem estava de cama. No mais, de todas as aldeias em redor e até das de longe, enchiam‑se os caminhos com gente aperaltada, os ricos nos seus cavalos ajaezados, os mais pobres cuidando de que mesmo os burros decrépitos fossem aparelhados com estribos, levassem albarda atapetada e alforjes sem remendos.

Ferragens para a lida dos campos, rédeas e atafais, cordame, sementes, plantas de viveiro, roupa, faziam‑se lá compras para o ano inteiro; e bebia‑se, comia‑se, festejava‑se, trocavam‑se mulas por burras, cabras por ovelhas, escolhia‑se o porco para a matança, invejavam‑se os que sacando um maço de notas compravam um alambique ou um daqueles carros de bois feitos à moda de antigamente, em madeira de castanho e ferro espesso a cobrir as rodas.»[1]

3. No que toca ao Douro e ao universo que o envolve, os excertos mais interessantes do livro vêm de Gaia, da meninice de Rentes de Carvalho. Aqui vai um — cheio de colorido e do Douro humano —, verdadeiro exercício de hipotipose:

«Nem a baía de Guanabara, nem Nova Iorque vista do avião ao anoitecer, nenhum Paris, nenhuma Roma, a Amazónia, as Pirâmides, o deserto, nada disso que viria depois e é grandioso, me deixou uma impressão tão viva e duradoura como a da paisagem que se avistava das janelas da casa em que nasci.

Mais tarde dei‑me conta de que a razão profunda do meu fascínio não era tanto a inegável beleza da vista, mas o facto de dali, como defronte dum gigantesco ecrã tridimensional, poder testemunhar do burburinho de mil vidas.

Para oriente, os meus olhos alcançavam até ao longe dos altos de Campanhã, as Fontainhas e, espreitando por entre o arco da ponte, as entradas dos dois túneis do caminho de ferro. Na linha superior era um constante passar de comboios. Na outra, muitos metros abaixo, apenas de vez em quando aparecia uma locomotiva a puxar lentamente vagões de mercadorias que desapareciam sob a cidade, a caminho do cais da Alfândega.

Na ponte de cima era o vaivém de eléctricos amarelos, camionetas de carreira, camiões, automóveis, grupos de gente.

Sem eléctricos e de curvas apertadas a cada extremo, a ponte de baixo era mais sossegada, com o seu trânsito de carrejões, vareiras, leiteiras e padeiras, carvoeiros, carros de bois. De longe a longe um camião com pipas, um táxi com pressa, mas buzinar não adiantava, porque quem ia pesado de carregos caminhava pelo meio do tabuleiro, sem ceder um palmo.

Eu via os carros, via as trouxas. Via mais longe as mulheres da carqueja, curvadas sob molhos incríveis, subindo dos barcos “rabelos” para o cais e, Calçada da Corticeira acima, aos rodeios, com uma lentidão e persistência de insectos. A Calçada da Corticeira, ruim de subir, ruim de descer, tão íngreme que parecia um traço quase vertical na encosta.

Nos Guindais a muralha ligava-se por degraus ao rio e aí atracavam às dezenas “rabelos” e “valboeiros”, os homens do leme correndo descalços sobre a gaiola, os outros atentos ao manejar dos remos e do cordame das velas, na manobra perigosa em que simultaneamente tinham de lutar contra as forças contrárias do vento e da água.

Por vezes acontecia ser o barco apanhado num redemoinho. Ouviam‑se gritos. Pessoas corriam pela ponte e pelos cais, pressentindo a tragédia, desatinadas por não poderem acudir. As velas caíam num ápice. Dois ou três homens subiam ágeis a ajudar o timoneiro, juntavam o seu peso ao dele e, carregando na ponta, conseguiam levantar da água a trave do leme. Assim evitavam que a força do rodopiar o quebrasse, mas o perigo continuava igual.

Ao longo dos cais mulheres caíam de joelhos, homens desbarretavam‑se em oração, pedindo misericórdia, implorando a Deus para que se apiedasse daqueles pobres em tamanho perigo. À deriva numa corrente tão forte, só a força divina impediria que o barco se fosse espatifar contra um molhe ou o casco de ferro dalgum cargueiro. E milagre, fleugma, ou ciência das coisas do rio, na fracção de momento em que o barco parecia hesitar na sua louca corrida, o leme caía na água, as velas levantavam‑se como por si só, o corpo retesado dos homens compensava a força que fazia curvar os remos na travagem. Besta domada, obediente à vontade de quem a mandava, a embarcação ia aos poucos ganhando a margem, até que alguém atirava um cabo e finalmente a prendiam ao cais.

As pessoas ficavam ainda um momento a olhar, a assegurar‑se de que já não havia perigo, a dizer‑se palavras de conforto. Passada a aflição desfaziam‑se os grupos e carregando o seu fardo ia cada um ao seu destino.

Nas casas da Ribeira, estendidas pelo muro, tudo era quietude. Por sobre elas, nos jardins do convento dos Grilos, passeavam em longas filas os seminaristas vestidos de negro. Mais acima, pesados e grandes, o palácio do bispo e a sé. Mas entre as casas e o rio os meus olhos não chegavam para abarcar o tumulto de tanto povo. Uns em correrias desencontradas, outros atarefados na descarga dos barcos, lavadeiras ajoelhadas a esfregar a roupa no cais, ou batendo‑a sem dó contra a cantaria dos degraus.

Devido à curva do rio, do lado do Porto o panorama terminava nos arredores do Palácio de Cristal, mas o resto conhecia‑a eu tão bem que me bastava querer e “via” a barra, o mar, os estaleiros do Lordelo, as traineiras ancoradas defronte da Afurada.

Na margem sul, a nossa, a trajectória dos olhos era breve: começava na igreja redonda da Serra do Pilar, descia para os telhados dos armazéns de vinho, o convento das freiras, e ia parar nas árvores seculares da quinta de Campo Belo.

Mas de tudo o que eu via da janela, o que mais me encantava era o rio. Então a barra ainda era funda, entravam por ela enormes cargueiros, tantos que às vezes ficavam atracados dois a dois, desde o Lordelo até à ponte. E porque na margem de Gaia não havia cais, a carga era morosa e pitoresca.

As pipas, os fardos, os caixotes, rolavam pelas pranchas ou levavam‑nos os homens da estiva à cabeça para as barcaças, que iam acostar aos navios. Os guinchos funcionavam a vapor e ao içar a mercadoria, ou quando a baixavam para os porões, saía deles silvando um longo penacho de fumo.»[2]


[1] CARVALHO, J. Rentes de, Ernestina, reimpressão da 5.ª edição, Lisboa, Quetzal Editores, 2018, p. 60.

[2] CARVALHO, J. Rentes de, ob. cit., pp. 135‑138.

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