João Pina de Morais, Sangue Plebeu

Oitavo texto da série Autores que Cantaram o Douro

João Pina de Morais (Valdigem, concelho de Lamego, 1889 – Porto, 1953) foi militar, escritor, jornalista e também um político defensor dos ideais republicanos. Na Primeira Guerra Mundial combateu na Flandres, integrado no Corpo Expedicionário Português. A experiência que aí colheu deu nascença a Ao Parapeito, escrito cuja primeira edição remonta a 1919.

Sangue Plebeu, de 1942 e novamente publicado em 2003, é um livro de contos que arrola terras e carateres durienses. Assentam‑lhe bem os seguintes ditos de João de Araújo Correia a propósito da obra do autor: «Pina de Morais fez da gleba a alma do seu mundo. O povo que teceu com mãos plutónicas, a pá e ferro, o tapete verde que reveste o Douro, é o seu protagonista – o seu mártir e o seu herói.»[1]

No livro desfila o rebotalho humano: criaturas que vivem com o baraço na garganta, que passam fome e só conhecem trilhos fragosos. Nas respetivas páginas cabe a passarada que o autor conheceu na sua infância e na sua juventude (O Rouxinol), o amor maternal que desagua em loucura (A Custódia), o crime fundado no ciúme (A Perdizinha) ou na partilha de água (Ad Petendam Pluviam). O Joaquim, de A Perdizinha, cortava o pão com a navalha — «Pão anavalhado, dizem eles, rende dobrado. Adágio que a fome inventou e que ensina a economia do pão, comendo‑o não a eito sobre o pedaço que se tem na mão, mas cortando com o canivete, vagarosamente, cada bocadinho que se vai metendo a boca.»[2] Tanto sofrimento e tantos abrolhos eriçam a sensibilidade de quem lê (coçaram a minha, pelo menos).

O Motim de Lamego teve lugar em 20 de julho de 1915 e dele resultou a morte de 11 ou 12 pessoas. Elas integravam uma horda de aldeões que marchou até à Câmara Municipal de Lamego e sucumbiram aos ferimentos causados, à uma, por bombas arremessadas pelos militares que estavam de guarda ao edifício e, à outra parte, por disparos com armas de fogo feitos quando a multidão se punha em debandada. Os manifestantes lutavam pelo seu sustento, contestavam o Tratado de Comércio e Navegação que Portugal havia celebrado com a Grã‑Bretanha e que tinha sido assinado em 12 de agosto de 1914. Em particular, afirmavam‑se contra o respetivo artigo 6.º, que abria a possibilidade de, na Inglaterra, a denominação de origem «Porto» se aplicar a qualquer vinho produzido no nosso país. O governo da nação acabaria por deixar claro que a designação «vinho do Porto» se referia apenas aos vinhos generosos da região duriense.

Em No Douro, o primeiro conto de Sangue Plebeu e aquele que mais me agradou, Pina de Morais fala dos trabalhos que, ao longo do ano, incidem sobre a videira, apresenta rica descrição das castas de uva e dos atributos do vinho do Porto, presta homenagem aos que forcejam na lida da terra, recria o Motim de Lamego e critica a atuação dos poderes públicos, que «abandonam à sua sorte o produto mais rico do País, aquele que podia dar o oiro que chegasse para equilibrar os orçamentos»[3].

Creio que Sangue Plebeu é um bom livro, com título bem escolhido. No entanto, eu não gostei muito de o ler. Aprecio a escrita fluida e o estilo enxuto e não foi isso que encontrei na obra em apreço. Cito outra vez João de Araújo Correia: «Pina de Morais escreveu em prosa os seus poemas. Escreveu‑os com arte informe, arte que lembra, como ele diz, “o desalinho suntuoso de uma cabeleira”.»[4] No que me toca, só nas mulheres aprecio as cabeleiras desamanhadas.


[1] CORREIA, João de Araújo, Cartas da Montanha, 2.a edição, Lisboa, Tertúlia de João de Araújo Correia e Âncora Editora, 2022, p. 21.

[2] MORAIS, João Pina de, Sangue Plebeu, 2.a edição, Lamego, Museu do Douro/Câmara Municipal de Lamego, 2003, p. 62.

[3] MORAIS, João Pina de, ob. cit., p. 28.

[4] CORREIA, João de Araújo, ob. cit., p. 21.

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