Apontamentos

Jean Cocteau em Villefranche‑sur‑Mer: a decoração da Capela de São Pedro

Décimo texto de uma série baseada na viagem, devotada ao património cultural, que fiz no Sul da França (Costa Azul e Provença) durante o verão de 2025

Capela de São Pedro, em Villefranche‑sur‑Mer

1. Jean Cocteau serviu‑se da arte para prestar tributo aos pescadores de Villefranche‑sur‑Mer e dos seus arredores: nos anos cinquenta do século passado, decorou uma capela que lhes pertencia (e que ainda hoje é deles).

A Capela de São Pedro é credora de visita mercê dos frescos que Cocteau lá pintou, com imagens de cariz religioso — episódios da vida de São Pedro —, profano — as jovens de Villefranche — ou que misturam os dois tipos (os zíngaros em festa durante a peregrinação a Saintes‑Maries‑de‑la‑Mer).

No que toca às primeiras, saliento, desde logo, aquela em que um anjo se apresenta para libertar Pedro enquanto ele dormia, na prisão do rei Herodes (cf. Atos dos Apóstolos, 12). Em segundo lugar, distingo aqueloutra na qual Pedro caminha sobre a água (cf. Evangelho de Mateus, 14, 22‑33), apoiado por um anjo e sob o olhar atento de Cristo. O trecho bíblico que acabei de mencionar é motivador, ele recorda como, perante as dificuldades, é proveitosa a entrega à fé.

Um anjo vem libertar Pedro
Pedro caminha sobre a água

A representação das mulheres de Villefranche evoca o quotidiano na terra. Uma delas usa capelina e maneja um cesto com peixes e ouriços‑marinhos, a outra — assim como os dois pescadores que aparecem na composição — olha para os anjos que se agitam no horizonte, perto do sol.

As jovens de Villefranche. Fui buscar a foto a https://cocteaumediterrannee.blogspot.com/2018/02/chapelle-saint-pierre-de-villefranche.html

Numa das paredes, um guitarrista acompanha com música a dança de uma rapariga e um pescador remenda a rede. Em plano superior, acima da rulote, Cocteau desenhou um anjo e também a Virgem Maria com o Menino nos braços. O artista reporta‑se à lenda das Santas Marias do Mar e, de maneira imediata, ao arraial gitano que, em maio, decorre em Saintes‑Maries‑de‑la‑Mer.

Segundo o raconto tradicional, um grupo constituído por gente que seguia Jesus Cristo foi expulso da Palestina depois da morte dele e tomou um barco, sem velas nem remos, que acabou por aportar à Camarga, ao ponto no qual se viria a levantar a povoação de Saintes‑Maries‑de‑la‑Mer. Entre os viandantes, figuravam Maria Salomé, Maria Jacobé e Sara — a serva negra de uma delas —, e ainda Maria Madalena, Lázaro e a sua irmã Marta. Maria Salomé e Maria Jacobé criaram acolá uma comunidade cristã, os restantes trataram de evangelizar a Provença. Sara tornou‑se objeto de veneração por parte do povo cigano, que anualmente vai a Saintes‑Maries‑de‑la‑Mer a fim de a homenagear.

2. Na Capela de São Pedro, depressa se topa o estilo de Cocteau. Os debuxos são bonitos, simbólicos, alguns são fortes. Contudo, nela reinava uma atmosfera maljeitosa, fria, desconfortável, faz ali falta a mão de um museógrafo. A arrumação da banca de souvenirs tampouco ajudava a criar um ambiente aprazível. A senhora que tomava conta do local era simpática, mas não tinha um módico de vocação para os espanejos e para os saberes da arte.

3. Cocteau foi buscar inspiração para escrever numa das paredes « Entrez vous‑mêmes dans la structure de l’édifice comme étant des pierres vivantes » a um trecho da Primeira Carta de Pedro (2, 5), que deveria ser lida por quem invoca Deus e a Bíblia e, no mesmo passo, destila ódio aos imigrantes.

Como Jesus, pedra viva rejeitada pelos humanos, mas preciosa aos olhos de Deus (Primeira Carta de Pedro, 2, 4), os imigrantes aprazem ao Senhor e, na esmagadora maioria dos casos, são pedras vivas e valiosas para a comunidade em que se inserem. Em Portugal, eles executam as tarefas que os locais declinam e, ainda assim, são menosprezados, numa cegueira que um dia virá a ter efeitos nefastos para aqueles que tanto os vituperam. Imigração, sim, com regras e não diabolizada.

Quanto a uma suposta grandeza no ser português, ela faz‑me rir: há tugas que me provocam repulsa e desprezo e há imigrantes que respeito e admiro.

Cartune de Lupo. Fui buscá-lo a lupodessins.wordpress.com (deposição de 12.10.2018)
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