Jaime Cortesão, Era uma vez um Rio…

Décimo nono texto da série Autores que Cantaram o Douro

Jaime Cortesão (Ançã, Cantanhede, 1884 – Lisboa, 1960) exerceu diversos ofícios. Designadamente, foi médico e professor. Em consequência da sua participação na Revolta de Fevereiro de 1927, teve de se exilar. Fixou‑se em Portugal no ano de 1957. Declinou o convite que opositores ao Estado Novo lhe fizeram no sentido de se candidatar à presidência da República e, nas eleições de 1958, apoiou Humberto Delgado.

De pluma na mão, deixou obra de relevo na historiografia portuguesa e também poesia, peças de teatro e memórias. Foi um grande descritor de terras, gentes e tradições, um desses que me fecundaram o espírito.

Era uma vez um Rio…, feito com matéria duriense, é um dos fragmentos que compõem a obra Portugal – A Terra e o Homem. Publicada pela primeira vez em 1966, nela foram reunidos escritos que versam sobre tipos humanos, paisagens, arte e costumes do nosso país.

Em Era uma vez um Rio…, os primeiros parágrafos são os mais fortes, apreciei o seu caráter telúrico e genesíaco. Aí se conta a passagem de «montanha deserta» a «jardim suspenso», o jardim suspenso que ainda hoje encanta quem o visita. Aqui estão eles:

«A história foi assim: No princípio a montanha era deserta. De Inverno, o gelo e as enxurradas dilaceravam‑lhe os flancos; no Estio, um calor de fornalha rachava as pedras; e nem uma fonte escassa matava a sede ao mato ralo dos piornos. Como grossas lágrimas, pedregulhos rolavam dos altos e mergulhavam no pego. Lá em baixo, onde se ouvia o estrépito da queda, muito ao fundo, apertado entre muralhas negras, o rio, monstro irado, devorava rochas e abria caminho, aos galgões, cuspindo lama e espuma lívida. Se acaso, de raro em raro, sopro de vento ali entrava, logo das arribas xistosas se erguiam e volteavam bulcões pulverulentos, que tornavam mais lôbrega a paisagem.

De longe em longe, águias perdidas baixavam em flecha das alturas e vinham dessedentar‑se na corrente.

Os homens abominavam aquele desvão inóspito; aborreciam‑no as aves; e apenas os arbustos silvestres, que afogavam raízes nas taliscas da fraga, proclamavam, com as tintas das flores e o mel dos frutos, as excelências do Inferno.

Ora um dia sucedeu que dois gigantes, um vindo de Trás‑os‑Montes e outro da Beira Alta, mais gigantes na alma que no corpo, galgaram as serras, desceram as encostas e, depois de olhar os fundões do rio e provar o néctar dos frutos bravos, entenderam que aquela terra e aquele rio eram, pela sua áspera grandeza, dignos da labuta de gigantes. E resolveram meter o picão às fragas; reduzi‑las a terrunha; amparar os seus “veios” estreitos com “socalcos” de pedra solta; e plantar sobre as escarpas, que eram sarças de fogo, os primeiros bacelos de videira.

Quando, mais tarde, voltaram, viram com surpresa que as vides carregavam e as uvas ressumavam um licor capitoso, que lhes dava leveza aos passos e alegria às almas.

Outros e mais outros, todos gigantes, vieram trazidos pela fama e, arquejando, dobrados sobre o chão, praguejando e gemendo, lacerando as mãos e os membros contra as lascas das ardósias, banhando a terra em suor e sangue, arrancaram do xisto novos “veios” que ampararam com novos “socalcos”: e o que fora a montanha deserta, tornou‑se em jardim suspenso.»[1]

Sempre com vocabulário e sintaxe pulcros, o autor refere igualmente a vinda dos ingleses, a conversão do Douro em via navegável e em «estrada de vinho», o barco rabelo e a arte de sulcar as águas do rio, a devoção e o apelo a São Salvador do Mundo.

Depois, rende preito aos que, a árduas penas, renitiram na transformação da terra duriense em mirabile visu:

«Ainda hoje, os netos dos gigantes de outrora continuam a permanente e dura faina de transformar em oásis o deserto e a rocha em ambrósia; ou acodem, nas “rogas” de Trás‑os‑Montes e da Beira para colher a uva e transportá‑la, cadenciados pela harmónica, nos grandes cestos vindimeiros.

E tu, regalado turista, que das altas varandas do rio te extasias contemplando o maravilhoso desdobrar de anfiteatros, debruados de canteiros e alvejantes de casais, considera com quanto esforço e dor outros homens, teus irmãos, humanizaram e floriram a paisagem selvática de outrora.»[2]

A fechar, Jaime Cortesão insiste na homenagem e outorga rasgo epopeico à empresa que o trabalhador braçal leva a cabo:

«E foi assim que o Douro se tornou a melhor vinha e o melhor vergel de Portugal; que os homens roubaram aos deuses, para a oferecer aos mortais de todo o mundo, a ambrósia divina; e que uma raça de gigantes ergueu o mais belo e doloroso monumento ao trabalho do povo português.

Esses foram e são os Lusíadas sem Camões.»[3]


[1] CORTESÃO, Jaime, Portugal – A Terra e o Homem, Apresentação de Urbano Tavares Rodrigues, [s.l.], Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987, pp. 25‑26.

[2] CORTESÃO, Jaime, ob. cit., p. 27.

[3] CORTESÃO, Jaime, ob. cit., p. 28.

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