Décimo terceiro texto da série Autores que Cantaram o Douro
Hercília Agarez nasceu em Vila Real, em 1944. Foi professora do ensino secundário, está aposentada. Escreveu ensaios — mormente sobre a obra de Miguel Torga —, crónicas, contos e poesia.
As Asas da Libelinha, de 2015, reúne poemas curtos compostos em jeito de haicu. Os títulos das três partes do livro (Percepções, Emoções e Reflexões) quadram com aquilo que na autora desata a observação das bagatelas do quotidiano e da vida campestre (também há referências à cidade).

Pelo livro passam, por exemplo, as sementeiras na primavera, a hora de verão e o tempo suplementar que ela concede para namorar a natureza, as flores de marmeleiro que prometem doçura quando outubro chegar, os tons que o outono põe na terra e que depois o inverno rouba; meninas de bibe que dão as mãos, casais de melros que namoram na cerejeira, cegonhas que nidificam em campanários; serras pintadas de branco, espigueiros vazios e saudosos de milho, vinhedos vaidosos, amendoeiras em flor, ciprestes do Douro. Hercília Agarez interpreta uma verdadeira sinfonia pastoral.
A autora consegue, em rasgos humorísticos, captar o real e, no mesmo passo, torná‑lo aliciante para o leitor (é o que se espera de textos que arremedam o haicu). Eis um exemplo[1]:
Seguem formigas
em procissão:
proibido ultrapassar.
Circulam livremente, os peixes:
não há sinais de trânsito
no reino de Neptuno
Embora As Asas da Libelinha possa ser visto como um caderno de notas do dia‑a‑dia, também há espaço para a crítica social, ilustra‑o o primeiro terceto de um dos poemas[2]:
Inúteis, os reformados:
lâmpadas fundidas
nunca mais dão luz.
A vocação generalizante, manifesta na crítica social, ressuma igualmente de duas composições que bolem comigo, as que constam das páginas 54 e 156:
Urtigas mordentes
invadem culturas:
estéril inveja.
Cansadas de Inverno
sorriem as árvores
mal o verde espreita.
……….
“Quem não aparece, esquece”.
Por vezes quem aparece
é para esquecer.
Caminha
sem olhar para o chão:
é mais limpo, o céu.
O que se diz das urtigas no primeiro poema assenta que nem uma luva aos invejosos, àqueles espíritos sáfaros aziumados pela simples existência doutrem. Quanto ao segundo texto, não serei o único a subscrever o que nele vai dito: amiúde, quem aparece é para esquecer, almas nobres, cultas e empáticas fazem‑se raras. A boçalidade espalha‑se sem pudores, Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos, as democracias e o Estado de Direito são alvo de ataques violentos. Prefiro olhar para cima, para o céu.
E o Douro? Por um lado, creio que o referente espacial de diversos poemas está situado em terra duriense. Por outro, a autora menciona‑o em diversas composições. Aqui deixo dois exemplos[3]:
Saquinhos de alfazema
aromatizam
intimidades…
Vinhedos vaidosos
miram‑se no espelho:
Narcisos do Douro.
……….
Mandela – branco igual a negro:
não há prisão que vergue
o ferro de um ideal.
Nem Baco, nem meio Baco
no paraíso do vinho e do suor:
Douro, de António Cabral.
No último poema, Hercília Agarez reporta‑se a dois carmes de António Cabral — Aqui, o Homem, e Aqui, Douro — que assoalham a admiração desse autor por aqueles que, a duras penas, converteram a terra duriense naquilo que ela é. A derradeira estrofe de Aqui, o Homem reza assim:
Nem Baco nem meio Baco!:
Aqui é o homem
que nada há que não suporte
mas suporta e persiste.
Aqui é o homem até à morte.
Como Mandela, também o povo do Douro é pertinaz, persevera e não deixa de forcejar. Como metal de liga dura, nada o dobra, ninguém o curva.

Hercília Agarez publicou Memórias da Quinta da Touriga no seu livro Histórias que o Povo Tece. Contos do Marão (2011) e, em versão reformulada, numa antologia de textos de autoras transmontanas que coorganizou[4].
Nesse texto, recria espaços e ambientes de uma quinta do Douro, conta estória curiosa acerca da transmissão da respetiva propriedade, deixa registo interessante a propósito do regime patriarcal que vigorou na sociedade portuguesa e, decerto, em quintas do Douro. «Aí viveu o engenheiro agrónomo com a esposa, uma senhora da melhor estirpe, bondosa e acomodada e que lhe deu duas filhas. Educada a obedecer, a aceitar os desígnios de Deus, a ser servil e discreta, engolia em seco os devaneios do marido conhecidos nas redondezas. Servia‑se da mulher, por obrigação conjugal, sem menoridades de preliminares e muito menos com a veleidade de lhe transmitir prazer. Digamos que a possuía com o desconforto de quem toma um remédio fora de prazo. Mas fora de casa comportava‑se, em intimidades excitadas, como um garanhão no auge da sua masculinidade, alheio à higiene mais que duvidosa dos fundilhos das fêmeas contempladas.»[5]
[1] AGAREZ, Hercília, As Asas da Libelinha, [s.l., mas a editora está sediada em Carviçais, Torre de Moncorvo], Lema d’Origem, 2015, p. 73.
[2] AGAREZ, Hercília, ob. cit., p. 106.
[3] AGAREZ, Hercília, ob. cit., pp. 38 e 107, respetivamente.
[4] AGAREZ, Hercília, «Memórias da Quinta da Touriga», in AAVV, Por Longos Dias, Longos Anos, Fui Silêncio: uma Breve Antologia de Autoras Transmontanas, 1.ª edição, organização de Hercília Agarez e Isabel Alves, Lisboa, Academia de Letras de Trás‑os‑Montes e Âncora Editora, 2015, pp. 143‑149.
[5] AGAREZ, Hercília, últ. ob. cit., pp. 144-145.