Quarto texto da série Autores que Cantaram o Douro
António Guedes de Amorim, escritor e jornalista, nasceu na freguesia de Sedielos, concelho do Peso da Régua, em 1901, e morreu em Lisboa, no ano de 1979. A sua obra desvela um humanista, um autor com preocupações de ordem social. Guedes de Amorim mostrou simpatias pelo marxismo, mas, tocado pela obra de São Francisco de Assis, converteu‑se ao catolicismo.

O romance Aldeia das Águias, cuja ação decorre em Sedielos e no Porto, foi publicado em 1939 e revisto pelo autor em 1973. Aí se conta a estória de Eduardo Campelo, um médico ambicioso e sem escrúpulos que, por asco ao meio rural e às suas pequenezes de índole diversa, troca a aldeia pela cidade e acaba por se transformar num farrapo, num «ex‑homem» (a imagem é impressiva). Nos caminhos que trilhou, fez mal a muita gente. Embora a trama e os personagens não surpreendam nem tragam novidade, não enxerguei ramerrames.
O entrecho é datado, traz marcas de tempos idos, a sociedade evoluiu: se é verdade que no meio rural — e no urbano também — a má‑língua e o temor do julgamento alheio seguem de vento em popa, o machismo tem perdido terreno; no presente, tampouco haveria lugar para o episódio da caça às águias, assente em tradição selvática incompatível com o animalismo que, nos dias de hoje, molda as consciências. As páginas em que Guedes de Amorim descreve tal sucesso são as melhores do romance.
Há livros que mordem. As respetivas dentadas sangram quando confrontam o leitor com a sua própria biografia, com o alforge das suas vivências. Henrique Campelo, o irmão de Eduardo, é senhor de alma digna e nobre. Deveras prejudicado pelos enredos que o irmão armou, acaba por tomar consciência de que «Também se pode deixar de ser irmão, muito embora se permaneça homem com aberta sensibilidade humana»[1]. Ele percebeu que Eduardo «tinha deixado de ser seu irmão»[2]. Faz alguns dez anos que eu cortei relações com aquele que, por consanguinidade, é meu irmão. Conquanto saiba identificar as minhas emoções, foi Aldeia das Águias que esquematizou, defronte de mim, o que sinto a respeito de quem, por grude de sangue, é meu irmão, mas que eu tenho por ex‑irmão.
Vilarinho, o alfaiate, é homem de feição terna e doce. Tomava graciosamente conta das crianças quando os progenitores destas estavam ocupados, para elas fazia bonecos de pano, foi ao cemitério deixar um desses bonecos na campa de um menino surdo‑mudo ao qual se sentia ligado por uma amizade magnética. Preso por crime que não cometeu, nem isso nele acendeu raiva ou despeito. Perante personagens como Vilarinho e como Henrique, e depois de conhecer a vileza de Eduardo e as consequências que ela teve para ele e para os que se depararam com a sua falta de pautas morais, acredito que o espírito de quem lê Aldeia das Águias se distancie de propósitos maleficentes e seja tocado por intuitos humanistas. O livro em apreço tem o seu quê de formativo.

Os Barcos Descem o Rio (1945) é uma coletânea de estórias de malha simples e escrita enxutíssima, a respetiva leitura não me agradou tanto como a de Aldeia das Águias. Os contos A Recoveira e Pai e Filho têm um remate assaz interessante. Guedes de Amorim desfia os dramas por que passam algumas almas e, por vezes, explicitamente localiza a ação em terra duriense.
O ledor de Os Barcos Descem o Rio faz uma viagem ao Portugal pobre e rústico do passado, de homens que batiam nas mulheres e de patrões que sovavam os miúdos a quem davam emprego. Aí encontra também gente com vivendas que desapareceram na fogueira do tempo: a Belarmina, uma recoveira, o Zé João, que escrevia cartas para outrem em gares e apeadeiros, e a Felismina, que tinha uma balança e achava sustento na pesagem dos que circulavam no átrio de uma estação ferroviária.
[1] AMORIM, Guedes de, Aldeia das Águias, Lisboa, Editorial Minerva, 1973, p. 173.
[2] AMORIM, Guedes de, ob. cit., p. 174.