Vigésimo primeiro texto da série Autores que Cantaram o Douro
Francisco José Viegas nasceu em 1962, no Pocinho, Vila Nova de Foz Côa. Dedicou‑se à docência, é escritor, jornalista e editor. Da sua mão saíram, designadamente, poemas, guiões para peças de teatro, romances policiais, relatos de viagem e textos dados à estampa em várias publicações periódicas. Dirigiu a Casa Fernando Pessoa, a Gazeta dos Desportos e as revistas Ler e Grande Reportagem, foi autor de programas de rádio e de televisão. Exerceu o cargo de Secretário de Estado da Cultura.

A composição de Regresso por um Rio (1987), o primeiro romance de Francisco José Viegas, é definida pelo regresso do autor à sua terra natal e pelas recordações (de pessoas, animais, lugares, coisas…) que ela lhe traz.
No caso em apreço, retornar ao torrão da infância é, igualmente, voltar ao rio, voltar «como um deus em atraso para a sua missa»[1]. O flume está omnipresente.
Referindo‑se aos filhos daquela terra, Francisco José Viegas fala do «rio que traziam em todas as partes do corpo e que ardia como fogo, que alimentava como a mais perfeita bênção de quantas ali alimentaram alguém»[2]. Encarando o Douro de um outro ângulo, direi que é intensa a sua vis atrativa. Limitei‑me a passear algumas vezes na região duriense e certo é que a sua singularidade não me larga, aferrou‑se ao meu espírito.
Entre as criaturas que as memórias do autor‑narrador desencantam, conta‑se um coronel bruto. Quando lhe disseram que certo general, Delgado de sua graça, queria ser presidente da República, retorquiu «Pois sim, mas seja delgado ou grosso, aqui sou eu o rei»[3]. Catarina, Aníbal e Henrique formam um trio de apaixonados. Catarina é sobrinha do coronel. Detesta‑o e tem aversão à sua pança e ao seu hálito feroz de agricultor‑militar. Aníbal é um homem passivo e enfadado com a vida que leva. Henrique administra propriedades do dito militar e o ódio que por ele nutre é o ódio de um democrata a um fascista.
Gostei muito de um trecho alusivo ao amor sob o prisma feminino. «É possível que Catarina amasse tanto Aníbal quanto Henrique. Todos sabem que as mulheres — no fundo — podem amar, e que o seu amor tem mais força que as torrentes de um rio em pleno inverno. O amor das mulheres oscila entre a margem da desconfiança e a do retraimento — e a margem da liberdade. E, quando descobrem que o amor navega nas veias que saem do coração, entendem seu dever deitar âncoras. O amor das mulheres que sempre amaram, que traíram por amor, que amaram por traição. Grande parte da história da humanidade precisaria de ser escrita a partir do amor das mulheres, mais do que da prolongada adolescência dos homens.»[4] — o grifo é da minha lavra.
Em Regresso por um Rio, Francisco José Viegas aborda a morte de algumas pessoas cujos cadáveres foram encontrados no flume e dá sinais de interesse pelo romance policial, género que viria a desenvolver ao longo da sua carreira.
No dizer de Catarina, quem reconhece a verdade do invisível reconhece a verdade do mundo[5]. Não me lembro de sentir os axiomas que regulam a nossa existência tão postos em causa como agora, na sequência da eleição de Donald Trump. Razão tinha Catarina: quem perceber a verdade do invisível, do inesperável, identificará a verdade do mundo.
[1] VIEGAS, Francisco José, Regresso por um Rio, 1.a edição na Porto Editora, Porto, Porto Editora, 2017, p. 15.
[2] VIEGAS, Francisco José, ob. cit., p. 21.
[3] VIEGAS, Francisco José, ob. cit., p. 40.
[4] VIEGAS, Francisco José, ob. cit., p. 88.
[5] Cf. VIEGAS, Francisco José, ob. cit., p. 105.