Emigrantes, de Ferreira de Castro, Os Emigrantes, de W. G. Sebald, e algumas observações

Romance de escrita fina, clara e percuciente, Emigrantes, de Ferreira de Castro, foi publicado pela primeira vez em 1928.

A generalidade das pessoas não lê livros, insiste‑se na necessidade de criar incentivos à leitura. Ora, não é idóneo fazê‑lo recorrendo a um martelo nem por via de obrigação criada no orbe do potencial leitor. É mais proveitoso ter na mão obras que proporcionem prazer, genuíno prazer. Já pela qualidade da redação, já pela narrativa, Emigrantes é uma delas.

A ação decorre no primeiro quartel do século xx, num Portugal pobre que negava o pão aos de baixa extração. Manuel da Bouça, o protagonista, mora perto de Oliveira de Azeméis e comunga com muitos outros o desejo de partir. «Em todas as aldeias próximas, em todas as freguesias das redondezas, havia o mesmo anseio de emigrar, de ir em busca de riqueza a continentes longínquos. Era um sonho denso, uma ambição profunda que cavava nas almas, desde a infância à velhice.»[1]

Nesse país atrasado e machista, Manuel da Bouça era reverente com os cavalheiros de posição, ríspido e malcriado para a mulher e para a filha.

Entre as setas que Ferreira de Castro crava na alma do leitor, conta‑se a do classismo inclemente — quando o paquete Darro aportou no Rio de Janeiro, os que haviam viajado em primeira classe desembarcaram e foram à sua vida, mas os passageiros da terceira classe foram obrigados a permanecer algum tempo num lazareto — e a da brutal ausência de elevador social, que tanto vergastou Manuel da Bouça. «Só faz dinheiro quem tem dinheiro. A gente espera, espera e desespera. Eu já não acredito.»[2] «Que um homem, como dizia aquele jornal que o senhor Fernandes leu outro dia, só a trabalhar, sem negócio, sem herança e sem tirar lucro do trabalho dos outros, não enriquece!»[3]

Ferreira de Castro é convincente ao mergulhar quem lê na infelicidade e na frustração de Manuel da Bouça, dei por mim a sofrer com os seus infortúnios.

Detesto os moralistas, os juízes ad hoc, o mexerico. Custou‑me sentir a vergonha que, por um lado, durante muito tempo impediu Manuel da Bouça — que tinha péssima vida no Brasil — de regressar à sua aldeia. Nesta teria de enfrentar o julgamento implacável dos seus conterrâneos, cuja língua afiada flagelaria quem, regressado de outras paragens, continuasse a ser pobre. E que, por outro lado, associada ao peso da mentira, o levou a partir depois para Lisboa, a fim de, no anonimato, esconder o seu estado de penúria. O homem que parecia forte e ousou emigrar era, afinal, um homem fraco, temente da sentença que os outros proferiam.

A nota seguinte não sai de um romance, de uma obra de ficção, vem do país real: cem anos depois, os jovens têm de deixar Portugal para arranjarem emprego decente, conquistarem autonomia financeira e serem alguém na vida.

Os Emigrantes, de Winfried Georg Sebald, é considerado uma obra‑prima da literatura mundial. Eu gostei mais de ler Emigrantes, de Ferreira de Castro. Aqui, à emigração subjaz a carência económica, a falta de horizontes. No livro de Sebald, publicado pela primeira vez em 1992, deixar a terra de origem foi uma necessidade existencial.

Sebald veste o fato de escritor‑narrador, mistura a ficção com o resultado das indagações que levou a cabo e, em quatro textos, recria a vida de outros tantos emigrantes, três deles com sangue judeu, no século xx: Henry Selwyn, um médico aposentado que nasceu na Lituânia e que em 1899, tinha ele sete anos, foi com a sua família, judia, viver na Inglaterra (como outros, pensavam que haviam arribado a Nova Iorque, não a Londres, e alguns continuaram a agarrar‑se à crença de que se encontravam na América); Paul Bereyter, um antigo professor do narrador, homem vocacionado para a instrução, que, por ter ascendência judaica e ser apenas três quartos ariano, foi impedido de continuar a ensinar na Alemanha; Ambros Adelwarth, um tio‑avô do narrador que nunca teve infância digna desse nome, partiu para os Estados Unidos antes da Primeira Guerra Mundial, foi empregado‑modelo de uma família judia rica, talvez amante de um dos respetivos membros, e acabou os seus dias numa clínica psiquiátrica (funcionalizado, sobre ele se pode escrever «que nunca existiu como pessoa privada, era apenas a correção personificada»[4]); Max Aurach, um pintor judeu que tinha 15 anos quando, em 1939, abandonou a Alemanha e se instalou na Inglaterra. Os pais de Aurach também quiseram ir para Inglaterra, mas adiaram a partida e, em 1941, foram deportados para a Letónia, onde morreram. A deportação dos pais e o atraso com que soube da sua morte marcaram‑no para sempre. O narrador conheceu Aurach em Manchester, a urbe na qual ele acreditara poder começar uma nova vida, sem pressupostos, mas que, afinal lhe trouxe à memória tudo o que ele almejava esquecer — Manchester era cidade de imigrantes, sobretudo alemães e judeus.

No raconto da vida desses quatro homens, Sebald comove e, com mestria, supera o relato de existências concretas e oferece a evocação de um tema, o exílio, e dos traumas que ele provoca.

A minha experiência de emigração é bem mais ligeira e agradável do que a relatada nos livros de Ferreira de Castro e de Sebald. Quis deixar Portugal e a provinciana Coimbra para arejar, para respirar ares cosmopolitas. No início da corrente centúria, vivi dois anos em Berlim. Deixar a capital da Alemanha e regressar à cidade da doutorice sufocou‑me e, dessarte, mortificou‑me.

Hoje, pela comunidade e por mim, sinto desalento. Como disse atrás, lastimo que, no que parece já radicar em carência objetiva, tantos jovens precisem de sair de Portugal para conseguir sustento. E eu, que daqui a uns anos gostaria de percorrer o caminho em sentido inverso, vejo o meu país ceder à progressão da ameaça totalitária que a extrema‑direita representa. Conforme disse noutro texto[5], o Chega pode continuar a crescer. É plausível que venha a ser o partido mais votado e que André Ventura, o caudilho, se torne primeiro‑ministro. Virão o abandalhamento institucional e o retrocesso do Estado de direito. Aliás, este já apresenta sintomas de erosão em vários países.

Há gente que, nos mapas, põe pins nos países que já visitou. Se os fosse pondo também naqueles em que a democracia e o Estado de direito são alvo de arremetidas, precisaria de um número crescente de pins.


[1] CASTRO, Ferreira de, Emigrantes, 29.ª edição, Lisboa, Cavalo de Ferro, 2013, p. 24.

[2] CASTRO, Ferreira de, ob. cit., p. 181.

[3] CASTRO, Ferreira de, ob. cit., p. 184.

[4] SEBALD, Winfried Georg, Os Emigrantes, tradução de Telma Costa, 1.ª edição, Lisboa, Quetzal Editores, 2013, p. 87.

[5] Chega: o seu êxito nas urnas e modo de lidar com ele.

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