Apontamentos

Em Nice, a exposição Matisse Méditerranée(s)

Décimo quarto texto de uma série baseada na viagem, devotada ao património cultural, que fiz no Sul da França (Costa Azul e Provença) durante o verão de 2025

1. Seduzido pelos encantos da Bretanha, aí assimilou Henri Matisse, no fim do século xɪx e junto do pintor australiano John Russell, a lição impressionista.

No verão de 1904, Matisse desceu à Costa Azul (Saint‑Tropez) para trabalhar ao lado de Paul Signac e, por influência deste, afastou‑se das tinturas espontâneas do impressionismo e optou pela técnica divisionista: com pequenos toques de pincel, aplicou cores puras na tela — a mistura de cores não tinha lugar na paleta, antes nos olhos de quem observava. Luxo, Calma e Volúpia, pintado em Paris, ainda em 1904, espelha tal modus operandi e resultou da estada de Matisse em Saint‑Tropez.

Henri Matisse, Luxo, Calma e Volúpia

O divisionismo não lhe encheu as medidas e aos salpicos depressa preferiu o aplat, a superfície colorida — assim exaltou a cor e se tornou figura de proa do fauvismo.

2. Amiúde, sinto que contemplar o objeto artístico é um privilégio, uma dessas experiências que fazem da vida uma graça. Tive semelhante perceção ao visitar a mostra Matisse Méditerranée(s) — patente ao público durante alguns meses de 2025 no Museu Matisse —, devotada aos encontros do pintor com o universo mediterrânico.

Acima mencionei Luxo, Calma e Volúpia, um dos quadros que integravam a exposição. No que sobra deste texto, escreverei acerca dos dois segmentos da mesma que mais me cativaram, a saber, o que reunia imagens de janelas e de espaços interiores e o que combinava quadros baseados nas deambulações de Matisse por distintos países da bacia mediterrânica. Não me vali apenas do critério do gosto: os óleos em causa dizem alguma coisa a propósito da empresa global do artista.

3. Janelas e espaços interiores

No seu caminho, designadamente naquele que trilhou em Nice, o mestre desenvolveu preferência pela composição que inclui janelas e, por exemplo, ateliês e quartos de hotel. À semelhança de Pierre Bonnard[1], Matisse obrou a representação do aconchego e da intimidade.

A janela — e, por vezes, também a varanda e o guarda‑corpo — é meio precípuo de arrumação da imagem, de repartição das linhas e da luz. De certa maneira, a luz que entra através dessa abertura aduna dois mundos, o interior e o exterior, o segundo passa a ser prolongamento do primeiro.

Nas últimas exposições de arte contemporânea que visitei e que versavam sobre o cosmo mediterrânico, deparei com tensão, migrações, biografias ásperas e luta pela sobrevivência. É mais ameno, quando não romantizado, o conceito de vida que as janelas e os interiores de Matisse transmitem: dir‑se‑ia de paz artística e burguesa à beira‑mar estabelecida.

Pelo emprego da cor na criação de aninho em quartos de hotel antiquados, distingo Interior em Nice (Quarto no Beau Rivage), de 1917‑1918, e Interior com Caixa de Violino, de 1918‑1919. No segundo, é interessante ver como a luz penetra pela porta‑janela e unifica espaço interno e espaço externo.

Henri Matisse, Interior em Nice (Quarto no Beau Rivage)
Henri Matisse, Interior com Caixa de Violino

Em Nu no Ateliê, de 1928, saliento a criação de profundidade, o modo como Matisse fez cantar os cambiantes de rosa e ainda o contraste entre a planura do céu e do mar e a riqueza dos elementos que estão dentro do estúdio.

Henri Matisse, Nu no Ateliê

4. Daqui e dali

No que respeita às pinturas a óleo que resultam das andanças de Matisse por países banhados pelo Mediterrâneo, escolhi duas que evidenciam o seu estro fauvista e duas que testemunham o seu encanto pelo imaginário norte‑africano e oriental.

La Moulade (1905‑1906) é uma vista da orla marítima em Collioure, na França, e tem o cunho do fauvismo: Matisse não debuxou objetivamente um local; os blocos de cor pura servem para sublimar a impressão que a paisagem nele despertou e para exteriorizar a emoção que sentiu ao vê‑la.

O artista ruma à expressão abstrata da paisagem, legitima perplexidades e interrogações. Uma das manchas verdes reporta‑se a uma casa? A um pedaço de natureza?

Henri Matisse, La Moulade

A Praia Vermelha (1905) traz também a marca fauvista. Nesta praia de Collioure, a areia era dourada ou amarelada, mas Matisse tingiu‑a de vermelho: não interessava a transmissão fiel do lugar, o mestre mostrou a sua perceção daquilo que tinha diante dos olhos e a fervença que o assaltou ao contemplá‑lo.

Por via da adulteração do real, do emprego do vermelho e da mossa que causa ao observador, Matisse deixou uma tela que não se esquece e cujo impacto visual ultrapassa a simplicidade da composição.

Henri Matisse, A Praia Vermelha

Em Vista da Baía de Tânger (1912), o autor simplificou a representação das formas — na imagem não cabe a figuração pormenorizada, há zonas onde o traço arquitetónico se apaga. As casas são meros blocos ou nem isso. Nesta obra, mais do que o poder da descrição, vale o da sugestão.

Henri Matisse, Vista da Baía de Tânger

A Odalisca com Cofrezinho Vermelho (1927) faz parte de uma série de quadros com odaliscas que Matisse pintou em Nice, num estúdio preparado para o efeito, e denota o seu interesse pela relação existente entre o volume do corpo e as superfícies do cenário.

Atento na mulher, seminua e sensual, em ambiente que apela ao exotismo. Aprecio a riqueza de padrões decorativos e o contraste entre cores vivas: o vermelho do cofre e do tapete, o verde e o amarelo do fundo, o verde do divã.

Henri Matisse, Odalisca com Cofrezinho Vermelho

[1] Cf. No Museu Bonnard, em Le Cannet (https://josepaulopego.net/no-museu-bonnard-em-le-cannet).

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