Em Nanci, prazeres gastronómicos

1. É lindo, o restaurante Excelsior. A sua sala de refeições incorpora trabalho de autores da Escola de Nanci, é uma montra de arte nova — na decoração avultam folhas de feto, representadas em grande trama de pedra, e os vitrais ostentam motivos de tipo vegetalista. Os candeeiros estilosos, os lambris de madeira de tamarindeiro antepostos às paredes, o mobiliário de acaju e os assentos e espaldares estofados com veludo também contribuem para criar um ambiente fino.

A ementa compreendia distinta oferta de marisco, o passadio típico de brasserie (sole meunière, andouilette, naco de alcatra, leite‑creme queimado, aqui com cheirito a bergamota), comeres habituais na região (quiche lorena, chucrute acompanhado por produtos do mar, chucrute com carnes) e delícias vinculadas à gastronomia local, como a Tout‑Nancy, uma sobremesa gelada, com bergamota e estilhas de macarons, coberta por calda de mirabela (na Lorena, essa variedade de ameixa é rainha).

Como emblemas do Excelsior, a lista indicava: pernil de porco fumado com feno e acompanhado por pomme grenaille e molho de Munster, um queijo produzido na Alsácia, na Lorena e no Franco‑Condado; chucrute estrasburguês (com carne e pernil de porco, salsicha de Frankfurt e salsicha lorena); chucrute com produtos do mar (salmão, bacalhau fresco, vieiras e hadoque); e plancha Excelsior (lavagante, vieiras, bacalhau fresco, salmão, espinafre e pomme grenaille). O tubérculo aqui referido é batata nova com dimensão transversal inferior a 35 milímetros.

Iniciámos as hostilidades com boa ostra fine de claire. Desencantei bucho de ema e prossegui atacando um tassalho de pernil de porco. Correspondeu às expetativas, regalei‑me com a pele estaladiça e fiquei fã da defumação com feno. A Jūratė optou por risoto de fregola com vieiras e molho de parmesão e o mínimo que posso dizer é que não se arrependeu de ter feito tal escolha. Acabámos com o requinte dos crepes Suzette, que estavam comme il fallait.

No restaurante Excelsior, a preparar crepes Suzette

2. Os negócios da família Marchand começaram em 1880, perto de Nanci. Sempre se caraterizaram pela defesa do produto local — aquele que, antes de chegar ao consumidor, passou por um circuito curto de distribuição —, prosperaram graças ao fabrico e à venda de queijo, alargaram‑se a outros domínios. Jantei no restaurante Les Frères Marchand da Grande‑Rue, em Nanci, aí tive uma ótima experiência gastronómica.

Do menu constavam Flammkuchen (tartes espalmadas e crocantes que, na sua versão clássica, levam queijo branco, cebola e tiras de toucinho), fondues confecionados com cinco queijos diferentes e pitança comum nas mesas da Lorena e da Alsácia, por exemplo: chucrute com lombo de porco, batata cozida e charcutaria diversa; leitão assado com batata ralada e chucrute; truta dos Vosgos com amêndoa torrada e batata ralada; schlitteur (lombo de porco e salsicha fumados, e ainda batata ralada, com chapéu de Gros Lorrain e gratinada). O Gros Lorrain é um queijo da família Munster que passa por aguardente e por licor, ambos de mirabela. Faminto, repimpei o estômago com schlitteur, prato pesado que deveras me agradou.

O rol de pospastos incluía fontainebleau (sobremesa originária da localidade homónima que, numa das suas versões, combina queijo fresco com natas batidas), moelleux au chocolat e leite‑creme queimado com aroma de bergamota. Pedi babá embebido em rum, condimentado com canela e badiana, achei‑o delicioso.

Estanislau Leszczyński (1677‑1766) foi rei da Polónia e grão‑duque da Lituânia e, mais tarde, duque da Lorena e de Bar. Embora não tivesse grandes poderes enquanto duque da Lorena, deixou cunho em Nanci, nomeadamente nas esferas da cultura e do urbanismo. Estanislau apreciava o babá ensopado em Tokaji, o célebre vinho doce húngaro. Por essa razão, há um restaurante da cidade que serve o babá com Tokaji.

Reguei o jantar com uma bebida espirituosa, popular nestas paragens, que resulta da mistura de cerveja com licor Picon. O sabor deste associa notas de casca de laranja seca, caramelo, genciana e quinquina.

Causam‑me urticária os homens adultos que nunca se libertaram das saias das mães, sinto que caíram numa modorra que contraria o ciclo da vida. No restaurante Les Frères Marchand comia um desses espécimes, na companhia da respetiva genetriz. Os losangos que lhe vi estampados no pulôver quadravam com os losangos, definidos pela figura materna, em que se desenrolava a sua vida. Não sei se isso é usual em França, mas percebeu‑o Gertrude Stein quando viveu nesse país, na primeira metade do século xx (a pontuação que aí vem é estranha): «Não há pausa nessa dependência ainda que um homem tenha sessenta anos e isso em França é muito frequente, o homem continua a depender da mãe, e por isso o francês é sempre um homem porque não há nada de inevitavelmente diferente entre ser‑se um rapaz e ser‑se um homem na vida de um francês e é sempre um filho porque continua sempre dependente da mãe quanto à sua força à sua moral, à sua esperança e ao seu desespero, ao seu futuro e ao seu passado.»[1] Temo que, por via da multiplicação dos pais‑helicóptero, o fenómeno se agrave.

Montra da queijaria Les Frères Marchand situada na Grande-Rue

3. A pastelaria Adam distingue‑se das concorrentes graças à produção e à venda de um doce e de jarras. Tenho em mente, por um lado, o Saint-Epvre, bolo de merengue amendoado, creme de baunilha e nugá moído. O exemplar que levámos para o hotel não nos entusiasmou e até deixou a Jūratė indisposta. Quanto às jarras — objetos decorativos, não comestíveis —, só Jean‑François Adam, o siliginário do estabelecimento, as faz. Manufaturadas com açúcar e corante natural, têm como modelo peças criadas pela vidraria Daum quando esta era uma das referências da Escola de Nanci.

Jean‑François disse‑nos que estudou pintura e declarou ser poeta. Soltou elogios ao seu trabalho e recitou versos da sua lavra. Antes tivesse ficado calado. Senti vergonha por ele, mas não o quis embaraçar diante de Geandra, a jovem funcionária brasileira da confeitaria, e deixei‑o entregue à falta de noção do ridículo.

Jean-François Adam com uma jarra da sua lavra

[1] STEIN, Gertrude, Paris França, tradução de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2016, p. 30.

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