Domingos Monteiro, O Caminho para Lá

Vigésimo terceiro texto da série Autores que cantaram o Douro

1. Domingos Monteiro (Barqueiros, Mesão Frio, 1903 – Lisboa, 1980) distinguiu‑se como ficcionista e, em particular, como novelista. Escreveu poesia e ensaio, uma comédia dramática e textos dados à estampa em publicações periódicas. Exerceu advocacia — defendeu, a título gracioso, muitos opositores ao regime então vigente — e integrou o movimento político Renovação Democrática. Fundou uma editora, a Sociedade de Expansão Cultural, e dirigiu o Serviço de Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian.

2. Enxuta e desprovida de ouropéis, a prosa de O Caminho para Lá (1947) dá azo a leitura correntia. É obra que li com imenso prazer.

Numa primeira fase, a estória é triste, terna, com notas de misticismo: o caminho em causa é o caminho para o céu, aquele que um miúdo, o Natinho (Renato), segue no sentido de voltar a ver a mãe, que morreu. A via acha‑se ensombrecida porque Luís, o pai de Renato, trata mal o seu filho, que injustamente responsabiliza pela morte de Maria do Carmo, sua mulher e mãe de Natinho.

Depois, Renato adolesce e são outros os espanejos relevantes, para ele e para a trama do romance. Este tem múltiplas filaças, bem interligadas. Por exemplo: o desenvolvimento da relação de Renato com Lúcia (ela inspirara nele um sentimento filial e fraternal, mas acabam enrolados na cama); as paixões de Luís; a omnipresença da Çãozinha (Maria da Conceição, irmã de Maria do Carmo), insuficiente para ela perder a sensação de existência frustrada — só mais tarde, mercê do seu altruísmo e da sua resistência durante a gripe pneumónica, isso se alterou.

O Caminho para Lá foi pensado como primeiro livro de uma trilogia que nunca viu a luz. Talvez por isso, termina em narrativa aberta. Para uma trama tão interessante, questões pertinentes ficam sem resposta. Que será dos amores de Renato com Lisa e com Lúcia? Que rumo levarão as relações entre Renato e o seu pai, Luís? Alguma vez este aconchegará o coração da Çãozinha?

 3. A terra duriense é o palco principal do enredo.

 Atente‑se nesta explicação, relativa ao rio Douro, dada a uma criança:

 «Renato tinha pena de o ver assim. Sabia — porque lho dissera o Chico Falinhas — que não lhe davam de beber. Sem piedade, os homens ainda lhe roubavam a água para engordar o milho.

 — O que vale, menino, é que os rios são muito amigos uns dos outros e ajudam‑se como podem. O Douro, se não fosse isso, no Verão nem tinha forças para chegar ao mar…

O pequeno tinha medo que eles se zangassem e lhe retirassem a ajuda.

 — Não tenha medo, menino, — tranquilizava‑o o Falinhas — só os homens é que se zangam; as coisas, não…»[1]

À semelhança do que sucedeu com Domingos Monteiro, Renato estudou num liceu de Vila Real. Da estância nessa capital de distrito vem nota que faz sorrir: à porta do estabelecimento escolar, uma senhora vendia doces cobertos com açúcar corado e permitia que, por metade do respetivo preço, os clientes apenas os lambessem. Só quem os quisesse comer pagaria a totalidade do preço…

O Caminho para Lá contém referências à época das vindimas, à dureza do trabalho que nessa faina os jornaleiros executavam, ao diminuto valor da paga que eles recebiam, à fraca qualidade da pitança que lhes era servida. Movido por bom propósito, Renato associou‑se a esses homens, entregou‑se, também ele — filho do patrão —, aos lavores fragueiros próprios da lide. Foi mal recebido pelos seus companheiros de ocasião, que dele troçavam ou, quando menos, o criticavam. Ontem como hoje — pense‑se no curso do populismo e nos motivos que levam à ascensão da extrema‑direita —, o ódio às elites funda um tipo de aversão que nunca desaparece da alma cainha que o sente.


[1] MONTEIRO, Domingos, O Caminho para Lá, Porto, Editorial Ibérica, 1947, pp. 33‑34.

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