Décimo oitavo texto da série Autores que Cantaram o Douro
Claudio Rodríguez (Zamora, 1934 – Madrid, 1999), senhor de uma voz poética singular, passou a infância e a juventude na terra natal. Mudou‑se para Madrid em 1951, aí se licenciou em Filologia Românica no ano de 1957. Leitor de espanhol nas universidades de Nottingham (de 1958 a 1960) e de Cambridge (entre 1960 e 1964), em 1964 regressou a Madrid, cidade onde fixou residência e se dedicou ao ensino. Traduziu obras de T. S. Eliot para a sua língua materna.
Conjuros, de 1958, é um livro em que Claudio Rodríguez regressa a Zamora, à província e à esfera rural. Nele faz referência, designadamente, ao Douro, ao tinto de Toro, ao cerro de Montamarta, à festa e ao baile de Águedas.
Dessa obra faz parte Al ruido del Duero:
Y como yo veía
que era tan popular entre las calles
pasé el puente y, adiós, dejé atrás todo.
Pero hasta aquí me llega, quitádmelo, estoy siempre
oyendo el ruido aquel y subo y subo,
ando de pueblo en pueblo, pongo el oído
al vuelo del pardal, al sol, al aire,
yo qué sé, al cielo, al pecho de las mozas
y siempre el mismo son, igual mudanza.
¿Qué sitio este sin tregua? ¿Qué hueste, qué altas lides
entran a saco en mi alma a todas horas,
rinden la torre de la enseña blanca,
abren aquel portillo, el silencioso,
el nunca falso? Y eres
tú, música del río, aliento mío hondo,
llaneza y voz y pulso de mis hombres.
Cuánto mejor sería
esperar. Hoy no puedo, hoy estoy duro
de oído tras los años que he pasado
con los de mala tierra. Pero he vuelto.
Campo de la verdad, ¿qué traición hubo?
¡Oíd cómo tanto tiempo y tanta empresa
hacen un solo ruido!
¡Oíd cómo hemos tenido día tras día
tanta pureza al lado nuestro, en casa,
y hemos seguido sordos!
¡Ya ni esta tarde más! Sé bienvenida,
mañana. Pronto estoy: sedme testigos
los que aún oís. Oh, río,
fundador de ciudades,
sonando en todo menos en tu lecho,
haz que tu ruido sea nuestro canto,
nuestro taller en vida. Y si algún día
la soledad, el ver al hombre en venta,
el vino, el mal amor o el desaliento
asaltan lo que bien has hecho tuyo,
ponte como hoy en pie de guerra, guarda
todas mis puertas y ventanas como
tú has hecho desde siempre,
tú, a quien estoy oyendo igual que entonces,
tú, río de mi tierra, tú, río Duradero.

Apresento a seguir o texto em português. Usei a tradução de Miguel Filipe Mochila[1], nela introduzi alterações.
Ao Ruído do Douro
E como eu reparava
que era tão popular pelas ruas
passei a ponte e, adeus, para trás tudo.
Mas até aqui me chega, tirem‑no de mim, estou sempre
a ouvir aquele ruído e subo e subo,
ando de vila em vila, encosto o ouvido
ao voo do pardal, ao sol, ao ar,
eu sei lá, ao céu, ao peito das moças,
e sempre o mesmo som, igual mudança.
Que sítio é este sem trégua? Que hostes, que altas lides
me saqueiam a alma a toda a hora,
rendem a torre da divisa branca,
abrem aquela porta, a silenciosa,
a nunca falsa? E és
tu, música do rio, meu fundo fôlego,
lhaneza e voz e pulsar dos meus homens.
Seria tão melhor
esperar. Hoje não posso, hoje estou duro
de ouvido, após tantos anos passados
com os de ruim terra. Mas voltei.
Campo da verdade, qual a traição?
Vejam como tanto tempo e tanta empresa
fazem um mesmo ruído!
Vejam só como temos tido sempre
tanta pureza ao nosso lado, em casa,
e continuámos surdos!
Já nem mais uma tarde! Sê bem‑vinda,
manhã. Estou pronto: que testemunhem
por mim os que ainda ouvem. Oh, rio,
fundador de cidades,
soando em tudo menos no teu leito,
faz com que o teu ruído seja o nosso canto,
o nosso trabalho vida afora. E se um dia
a solidão, o ver o homem à venda,
o vinho, o desamor ou o desânimo
assaltam o que bem fizeste teu,
põe‑te como hoje em pé de guerra, guarda
todas as minhas portas e janelas
como sempre fizeste,
tu, que oiço agora como ouvia outrora,
tu, rio da minha terra, tu, rio Duradouro.
Depois de fugir de Zamora, o autor imprime certo ritmo ao poema, um ritmo que marca a perseguição a que parece sujeito. O elemento acossador e obsidiante é o ruído do rio, do flume ao qual acaba por pedir proteção.[2]
À semelhança do que sucede noutros carmes de Conjuros, é manifesto, em Al ruido del Duero, o «afã participativo»[3] — o vate dirige‑se aos leitores, mas também aos personagens que se encontram no poema. Ele fala com o Douro e com a respetiva música, o emprego da apóstrofe transmite vivacidade à composição.
A anáfora dos últimos versos («tú, a quien estoy oyendo igual que entonces,/tú, río de mi tierra, tú, río Duradero») reforça o apelo feito ao rio e o cariz autobiográfico do texto. Aquele é o flume da sua terra, o curso de água que, agora como no passado, o autor ouve. E que, atentando na metonímia (Duradero por Duero, Duradouro em vez de Douro), é um elemento com o qual sempre poderá contar. No que ao Douro diz respeito, Claudio Rodríguez cria um fiat protetor.
No parecer de Joaquín González Muela[4], é ao marulho do rio — e não ao escrevente — que se reporta o adjetivo «popular» do segundo verso. Aquilo que se capta pelo ouvido oferece‑se apenas de jeito superficial. Em causa está um som vulgar e por isso o vate dele se desinteressa. Depois, já longe, ei‑lo convertido em música, em «lhaneza e voz e pulsar dos meus homens». E o poeta decide voltar ao burgo para ouvir o ruído verdadeiro (ou da verdade), não o zumbido ordinário, «popular». O flume deixa de ser água que corre e emite sons, torna‑se um símbolo funcional («põe‑te como hoje em pé de guerra, guarda/todas as minhas portas e janelas») e o carme termina com uma perceção auditiva — agora, ao invés do que sucedia no início do texto, a perceção é profunda, «bien poseída» — e com o nome próprio do rio, numa variante do nome usado no título da composição. O poema acaba onde tinha começado.
O aviso de González Muela é interessante e denota a riqueza interpretativa que o escrito poético gera. Creio, todavia, que o seu entendimento força a nota. O que vejo no início do texto é o vate que, desmotivado, sai da cidade.
Claudio Rodríguez, leitor do Romancero de Zamora, recorre ao elemento histórico‑espacial carreado pela tradição oral. O «portillo, el silencioso,/el nunca falso» será a Porta da Traição[5] — que hoje, por se ter abandonado o modo de ver castelhano e se ter passado a seguir o prisma zamorano, se chama Porta da Lealdade. Por ela terá entrado em Zamora Vellido Dolfos depois de matar D. Sancho II, cujas tropas sitiavam a cidade (D. Sancho II, rei de Castela, mandara cercar o burgo porque não aceitara que seu pai, D. Fernando I, rei de Leão, o tivesse legado a D. Urraca, filha de D. Fernando I e irmã de D. Sancho II). Na sequência do assassínio do monarca, os castelhanos levantaram o cerco a Zamora.
Bem assim, o Campo de la verdad mencionado no vigésimo primeiro verso é o local onde, na sequência do desafio que lançou a Zamora e que foi motivado por sede de vingança, Diego Ordóñez de Lara se bateu contra cavaleiros zamoranos, filhos de Arias Gonzalo[6].

Não morro de amores por Al ruído del Duero, composição cujo desenvolvimento não é linear. Sinto que nela topei com bossas pouco convincentes. É, contudo, um poema interessante. Estudei‑o no âmbito de um projeto pessoal que versa sobre autores que cantaram o Douro. A verdade é que Claudio Rodríguez não apenas o cantou, mas, no texto em apreço, chegou a pedir‑lhe proteção e logrou sublimá‑lo.
[1] RODRÍGUEZ, Claudio, Sem Epitáfio, tradução de Miguel Filipe Mochila, seleção de Sergio García García, [s.l.], Língua Morta, impresso em 2018, pp. 77 e 79.
[2] Cf. PRIETO DE PAULA, Angel L., La llama y la ceniza. Introducción a la poesía de Claudio Rodríguez, 1.a reimpressão da 1.a edição, Salamanca, Ediciones Universidad de Salamanca, 1993, pp. 137‑138.
[3] Expressão utilizada por Prieto de Paula (ob. cit., p. 82).
[4] Que consultei em Prieto de Paula, ob. cit., p. 138.
[5] Cf. MEZQUITA FERNÁNDEZ, María Antonia, «Comentario en el aula del poema “Al ruido del Duero” de Claudio Rodríguez», Aula, volume 13, 2001, p. 223 [consultei o artigo na internet em 5.2.2025 – https://gredos.usal.es/bitstream/handle/10366/69401/Comentario_en_el_aula_del_poema_Al_ruid.pdf?sequence=1&isAllowed=y].
[6] Vd. MEZQUITA FERNÁNDEZ, María Antonia, ob. cit., p. 223 (a autora dá mostras, porém, de alguma falta de rigor).