Caunas: bem viver e arquitetura do período entreguerras

Em junho de 2023, com a Jūratė, passei uma semana em Caunas, a segunda maior cidade da Lituânia. À semelhança do que, em anos anteriores, acontecera noutras terras lituanas (Vílnius, Klaipėda, Nida…), aí me senti feliz. Depressa aderi à cidade, lesta a oferecer‑me a mão.

Apreciei a funcionalidade, a limpeza, a sensação de desafogo, a presença da água e os espaços verdes. Não dei por poluição sonora ou ambiental. Nas margens de um lago próximo de Caunas, situado ao pé de uma mata com carvalhos, pinheiros e áceres, fui à praia. Era concorrida, mas os que a frequentavam respeitavam o espaço alheio, não eram intrusivos nem barulhentos. E, para criaturas friorentas como eu, a água apresentava temperatura decente.

Imagem de um lago próximo de Caunas

Acresce que noto, na sociedade lituana, uma coesão que não sinto nos países da Europa Ocidental.

Ainda há cidadãos lituanos que se curvam ao fantasiar a grandeur do Ocidente, mas, no meu parecer, vive‑se melhor na Lituânia do que em qualquer outro país da União Europeia.

Caunas é uma cidade bonita, banhada por dois rios, o Neris e o Nemunas. Para o seu encanto contribui, de maneira decisiva, o património imobiliário do período entreguerras. Com Vílnius em mãos alheias, Caunas tornou‑se a capital do país, era imperativo edificar muito e de forma correta. A cidade chamou os melhores arquitetos lituanos, que conceberam unidades interessantes, de estilos diversos, para fins civis ou religiosos, destinados a uso público ou a utilização particular. Nas décadas em questão, foram construídos milhares de imóveis.

Caunas ufana‑se desse cabedal, estadeia‑o em livros e brochuras, exibe‑o como resultado de uma «arquitetura de otimismo», da crença em laborar bem e da fé na autonomia política (na época, a Lituânia foi independente). Ele consubstanciava, pois, a manifestação de um imenso orgulho nacionalista. Do edificado em apreço, assinalo a principal estação dos correios, desenhada por Feliksas Vizbaras, a gigantesca Igreja da Ressurreição, o cinema Romuva, criação de Nikolajus Mačiulskis na qual é patente a influência da art déco, a casa onde moraram Pranas Gudavičius e Aleksandra Iljinienė, de 1933 e ideada por Arnas Funkas, o bloco de apartamentos em que agora funciona o Museu de Art Déco e aqueloutro onde foi aberto o Museu da Escola de Amesterdão.

Cinema Romuva. Foto: istorijoslobynas.lt

A Igreja da Ressurreição começou a ser levantada em 1934, segundo o risco de Karolis Reisonas. Os trabalhos foram interrompidos e, em 1952, o poder soviético decidiu afetar o local ao fabrico de rádios. As obras de restauro do templo tiveram lugar depois de a Lituânia se tornar de novo independente e a igreja viria a ser sagrada em 2004. Nela se juntam monumentalidade, verticalismo e despojamento. Avulta, suspensa na parede fundeira da capela‑mor, uma bela escultura de Jesus ressuscitado.

Igreja da Ressurreição. Fotografia: N. Tukaj – © Deep Baltic 2016 (fui buscar a foto a deepbaltic.com)

Na igreja decorriam as exéquias de uma neta de Mikalojus Konstantinas Čiurlionis, respeitado compositor e pintor. As cinzas de Dalia, que morrera havia alguns meses, tinham sido depositadas numa pequena urna. Enxerguei respeito e comoção, mas só vi um abraço e alguns meneios de cabeça. Nenhum beijo, nem uma lágrima. Quanto às flores que as pessoas traziam, eram todas de cor branca.

Fui à Igreja da Ressurreição no dia em que passavam 12 anos desde a morte da minha mãe. Rezar pela sua alma deu‑me trégua interior, mas não evitou a pergunta, talvez descabida e vinda dos fundos da emoção, que sempre me assalta em circunstâncias semelhantes: que Deus é este, que há tanto tempo levou a minha mãe e deixa cá andar o meu pai (indivíduo que aqui não posso qualificar, sob pena de cometer crime previsto na lei penal)?

O prédio onde está situado o Museu de Art Déco foi concebido por Edmundas Alfonsas Frykas, o respetivo exterior ostenta motivos decorativos que o guia da visita associou ao nacionalismo lituano. Um casal de empresários comprou um dos apartamentos, adquiriu peças art déco e acabou por abrir um espaço expositivo que imita um lar — já por causa dos móveis, já para atentar nos frisos, ele merece atenção.

O grupo de visitantes em que me inseri integrava 13 letões, homens e mulheres. Como eu, chegaram antes da hora marcada para o giro e, mesmo sem entender a língua que falavam, percebi que eram desmiolados, achei estranho que ali estivessem. Depois, quando o nosso cicerone lhes perguntou o porquê da visita, um deles disse que foi o seu marketing manager, para eles um guru, que tinha marcado a ida ao museu. Ficou claro: o dito gestor sabia o que tinha na empresa e queria pôr alguma coisa no cérebro daquela gente.

O Museu da Escola de Amesterdão pertence aos donos do Museu de Art Déco e opera num bloco de linha curva que produz um efeito plástico interessante. De 1928, o edifício é, na Lituânia, o único espécime representativo do estilo dessa escola. Se bem compreendi, o nome do museu radica no imóvel, não no acervo.

Os edifícios de madeira, por norma preservados e com pátina que atrai, contam‑se entre as preciosidades da Lituânia. No período entreguerras, muitos habitantes de Caunas ergueram moradias de madeira, desde logo porque não podiam suportar os custos da alvenaria. Algumas dessas casas, designadamente em Žaliakalnis — a Colina Verde —, sobreviveram à pira do tempo, observá‑las cria rus in urbe e engendra relação harmoniosa com aquilo que se vê.


Museu da Escola de Amesterdão
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