António Modesto Navarro, Morte no Douro

Décimo sétimo texto da série Autores que Cantaram o Douro

António Modesto Navarro nasceu em Vila Flor, Trás‑os‑Montes, em 1942. Assinou alguns dos seus trabalhos com o pseudónimo «Artur Cortez». Escreveu romances — romances policiais, por exemplo —, contos, poemas, ensaios, tem textos publicados em jornais e revistas.

Resistente antifascista e militante do PCP, exerceu mandatos autárquicos na sua terra natal e em Lisboa, a cidade em que se fixou. Laborou no setor da publicidade e foi técnico superior do Ministério da Cultura.

Na sua obra, Modesto Navarro presta particular atenção às zonas rurais e ao interior de Portugal e, na esteira dos neorrealistas, mostra preocupações de ordem social e de denúncia da injustiça e da exploração do aguante humano.

Morte no Douro, de 1986, não é um romance policial, conquanto aqui ou ali se aproxime de tal género. Entre as razões que levam Artur, o narrador, a terras do Douro, conta‑se o fito de apurar quem assassinou o velho Baltazar Reis, atingido por um tiro disparado à queima‑roupa num vinhedo.

Quem lê Morte no Douro topa com memórias de infância do narrador (o mosto a ferver, a pisa de uvas até à meia‑noite, as cantorias com as pernas entorpecidas na lagarada…), mas a matriz duriense resulta, no precípuo, das referências aos negócios do vinho e da terra, às traficâncias que eles escondem. Fiel às ideias que defende, Modesto Navarro malsina o grande capital do setor vitivinícola, o seu conluio com o poder político, o seu jeito de espezinhar o pequeno produtor.

O percurso de Modesto Navarro, enquanto cidadão e com a caneta de escritor, é digno de respeito. Gostaria de ter apreciado Morte no Douro. Os enredos policiais despertam a minha curiosidade. Por outra banda, o meu apego a textos dos herdeiros do neorrealismo cresce à medida que ouço os cânticos liberais — redundam no agravamento de condições de vida e de trabalho — e que observo o desregramento na repartição da riqueza e o desinteresse por políticas eficazes de redistribuição de rendimentos. Mas a verdade é que o livro em apreço não me cativou: o recurso sistemático à analepse é feito de maneira infeliz e prejudica o desnovelar da trama, não consegui fazer uma leitura correntia; o vocabulário nada tem de especial.

Registo, ainda assim, boas surpresas. Agradou‑me o desfecho que, deslindada a autoria do crime, Artur propôs ao homicida. E prezei certa perceção de que o regresso à terra natal não significa forçosamente a reassunção do passado, mas resgata (sempre) o sentimento de ter origens.

Nas obras que tenho lido — de autores que cantaram o Douro —, há descrições que quadram com o Portugal machista que convertia as mulheres em objetos. Atente‑se no trecho de Morte no Douro que a seguir transcrevo, o que ele revela desse país sexista e classista só pode suscitar nojo. «Bengalas de castão e raparigas derrubadas nos campos e em casa. A enxerga grande da criada, a certa altura, fez‑me recordar coisas dessas. Atravessavam‑se os sítios onde elas dormiam como quem passava no corredor. Estão a ver, uma rapariga apetecível e cansada, ao fim da lida da cozinha. Nem é preciso derrubá‑la. Se gritar, é despedida. Chega‑te para lá um pouquinho, vá. E pronto. Se vem um filho é só pô‑la na rua.»[1] E o que se diz nos livros fica aquém da realidade…


[1] NAVARRO, Modesto, Morte no Douro, 1.ª edição, Lisboa, Ulmeiro, 1986, p. 112.

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