Antonio Machado, Orillas del Duero

Undécimo texto da série Autores que Cantaram o Douro

Antonio Machado, um dos autores da Geração de 98, nasceu em Sevilha, em 1875, e morreu em Collioure, na França, em 1939. Durante a Guerra Civil Espanhola, alinhou com os republicanos, publicou textos em defesa da respetiva causa e viu‑se forçado a deixar o seu país.

Aqui trago Orillas del Duero, publicado no livro Soledades. Galerías. Otros poemas, de 1907. É o primeiro poema em que o autor se refere a Sória e terá sido escrito quando Machado aí se deslocou, em maio de 1907, para o ato de posse do lugar de professor no Instituto General y Técnico (hoje, IES Antonio Machado) ou, pelo menos, resulta dessa andança[1]. Estimam tratar‑se do primeiro poema no qual o vate, que até aí seguia trilho intimista e subjetivista, abre campo a uma linha descritiva que valoriza a paisagem, o cenário[2].

O pendor descritivo foi depois acentuado em Campos de Castilla, de 1912, trabalho que inclui os carmes A Orillas del Duero e Orillas del Duero (diferente da composição referida no parágrafo anterior).

Optei por apresentar o poema arrolado em Soledades. Galerías. Otros poemas. Nele acho interessante uma aparente contradição — que, pela mão de outrem, juso dilucidarei — e, dos três referidos, é o que melhor se adequa ao formato de blogue.

Orillas del Duero

    Se ha asomado una cigüeña a lo alto del campanario.

Girando en torno a la torre y al caserón solitario,

ya las golondrinas chillan. Pasaron del blanco invierno,

de nevascas y ventiscas los crudos soplos de infierno.

                           Es una tibia mañana.

El sol calienta un poquito la pobre tierra soriana.

    Pasados los verdes pinos,

casi azules, primavera

se ve brotar en los finos

chopos de la carretera

y del río. El Duero corre, terso y mudo, mansamente.

El campo parece, más que joven, adolescente.

    Entre las hierbas alguna humilde flor ha nacido,

azul o blanca. ¡Belleza del campo apenas florido,

y mística primavera!

    ¡Chopos del camino blanco, álamos de la ribera,

espuma de la montaña

ante la azul lejanía,

sol del día, claro día!

¡Hermosa tierra de España!

E agora, a versão portuguesa. Utilizei a tradução do poema feita por José Bento[3] e nela introduzi algumas alterações.

Margens do Douro

    Debruçou‑se uma cegonha no alto do campanário.

Girando em torno da torre e do casarão solitário,

já as andorinhas chiam. Passaram do branco inverno

de nevões e nevascas os crus sopros de inferno.

          É uma tépida manhã.

O sol aquece um pouquinho a pobre terra soriana.

    Passando os verdes pinhos,

quase azuis, a primavera

vê‑se brotar nos finos

choupos da carreteira

e do rio. O Douro corre, límpido e mudo, mansamente.

Mais que jovem, o campo parece adolescente.

    Entre as ervas, alguma humilde flor nasceu,

azul ou branca. Beleza do campo que mal floresceu,

e mística primavera!

    Choupos do caminho branco, álamos da ribeira,

espuma da montanha

frente à lonjura azul,

sol do dia, claro dia!

Formosa terra de Espanha!

O texto gera perplexidades. Ao falar delas e das vias para as dissipar, seguirei o que é dito por Gregorio Salvador em «Orillas del Duero», de Antonio Machado[4].

São vários os defeitos que no poema podemos lobrigar. Entre eles, contam‑se a adjetivação elementar, o rípio no fim do quarto verso («inferno» só lá está para rimar com «inverno») e, no décimo segundo verso, a personificação que destoa da simplicidade do resto da descrição[5]. Outrossim, faz‑se referência a um casarão solitário, a manhã é tépida, a terra é pobre e o sol só a aquece um pouquinho, a primavera chegou, mas apenas oferece alguma humilde flor. Como se pode assim falar de «Formosa terra de Espanha»?[6] Como é que a exclamação final se converte num epifonema capaz de bulir com o leitor e de nele suscitar emoção?[7]

Gregorio Salvador recorre à comutação — experimenta substituir algumas palavras do poema por outras — e acaba por concluir, designadamente, que o adjetivo «claro» no penúltimo verso é insubstituível: ele é a dobradiça que une o corpo do poema ao verso final, ele é a palavra‑dobradiça que a este dá sentido. Para tal adjetivo convergem, e nele se fundem, as alvuras, os brancos e os azuis que correm no poema (a neve, a flor, a espuma e as plumas das cegonhas são brancas…). E é toda essa claridade que torna formosa a terra de Espanha.[8]

Afinal, o registo expositivo destituído de fulgores e a veia lírica que parece pobre escondem malha interessante e estas Orillas del Duero só desiludirão os que se quedarem pela observação da paramentaria.


[1] Cf. BENTO, José, in MACHADO, Antonio, Antologia Poética, seleção, tradução, prólogo e notas de José Bento, 2.ª edição, Lisboa, Cotovia, 1999, p. 228.

[2] Cf. CELMA, M.a Pilar, in MACHADO, Antonio, Poesías Completas, edição de Manuel Alvar, guia de leitura de M.a Pilar Celma, 49.ª edição (oitava impressão), Barcelona, Espasa Libros, 2018, p. 494.

[3] In MACHADO, Antonio, Antologia Poética, p. 19.

[4] SALVADOR, Gregorio, «“Orillas del Duero”, de Antonio Machado», in AAVV, El comentario de textos, Madrid, Editorial Castalia, 1973, pp. 271‑284.

[5] Cf. SALVADOR, Gregorio, ob. cit., p. 274.

[6] Vd. SALVADOR, Gregorio, ob. cit., p. 275.

[7] Cf. SALVADOR, Gregorio, ob cit., p. 273.

[8] Vd. SALVADOR, Gregorio, ob cit., pp. 279‑280.

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