Terceiro texto da série Autores que Cantaram o Douro
Os dois grandes poetas portugueses do Douro são Miguel Torga e António Cabral. Se dúvidas houvesse a esse respeito, elas dissipar‑se‑iam mediante a leitura de Os Cantores do Douro, um escrito que integra o livro Por Esta Terra Adentro (Páginas Trasmontanas), de A. M. Pires Cabral[1].
Guerra Junqueiro nasceu em Freixo de Espada à Cinta e viveu na Quinta da Batoca, em Barca de Alva. No entanto, a terra duriense foi para ele lugar de lavoura — era um proprietário abastado —, não uma fonte de inspiração poética.
Sobre Miguel Torga falarei noutro texto, agora passei por aqui para deixar meia dúzia de referências a António Cabral e ao seu livro Poemas Durienses, ilustrado com sugestivos linóleos de Nuno Barreto e dado à estampa, pela primeira vez, em 1963. Foi o primeiro de oito volumes da Coleção Setentrião, criada no âmbito do movimento cultural homónimo que nasceu em Vila Real nos anos sessenta do século xx.
António Cabral (Castedo do Douro, 1931 – Vila Real, 2007) foi poeta, ficcionista, dramaturgo, cronista, ensaísta, escreveu acerca dos jogos e das tradições populares. O universo trasmontano e duriense marca presença vincada na sua obra.

Os Poemas Durienses ressoam a consideração que o seu autor tem pelo ser humano, mormente por aquele que, em terras do Douro, executa os trabalhos fragueiros. Atente‑se, logo na parte inicial do livro, em Aqui, o Homem (o recurso à anáfora na primeira estrofe não é anódino) –
Nem Baco nem meio Baco!:
Aqui é o homem,
desde as mãos ossudas e calosas,
desde o suor
ao sonho que transpõe as nebulosas.
Montes de pedra dura,
gólgotas
onde os geios são escadas!
Venham ver como sobe o desespero
e a esperança, de mãos dadas.
É o homem.
Isso é o homem.
– Nem sátiro nem fauno –
Uma vontade erguida em rubro gládio
que ganha a terra, palmo a palmo.
Vinhas que são o inferno,
o único
em que o fogo é a taça da alegria!
Venham ver um senhor
grandioso como o sol ao meio-dia.
Nem Baco nem meio Baco!:
Aqui é o homem
que nada há que não suporte
mas suporta e persiste.
Aqui é o homem até à morte.
Na mesma esteira, e denunciando o compromisso do vate com a gente do Douro, a sua gente, aprecie‑se Homo, Mensura –
Eu não irei convosco, puros habitantes do sonho.
O meu lugar é aqui, entre os homens:
falo a sua linguagem, sinto as suas dores
e tenho a consciência bem agarrada
à carne e ao espírito – os dois poços
em que nasce, desagua e se debate
a impetuosa água do meu pensamento.
Que me importam inimagináveis galáxias
e os poemas feitos apenas de palavras?
Reflictam-se as galáxias em nosso espírito
e sejam carne da nossa carne.
Encham-se os poemas do sangue
que nos turva, perturba e inunda as veias.
A única poesia em que acredito é a do homem.
Aquilo que mais entusiasma o leitor é justamente essa poesia da parra ensanguentada, do suor e da calosidade.
Gostei de, em errância romântica, passear com a minha companheira no Douro. Mas os versos de António Cabral confrontam‑me com a viagem fagueira que fiz e acendem em mim vontades de, em próxima ocasião, ali empreender giro de índole diversa. Perceberá o que digo quem ler O Pinhão –
Lá em baixo, na curva do rio,
vazadouro e fornalha, está o Pinhão.
Belo!, belo! – dirá o turista.
E o burocrata: progressivo.
Mas o Pinhão não é nada disso,
é mais do que isso, não é nada
do que mostram os documentários de cinema
ou qualquer “Life” comercial.
Pinhão!, capital do suor, os teus caminhos
são pedaços de sangue coagulado.
Entre as outras virtudes do livro em causa, saliento, por muito me ter agradado, a musicalidade que se solta da leitura de poemas como Lá Vem um Barco Rabelo, Ermida de Nossa Senhora da Piedade em Sanfins do Douro, Cantiga que eu Ouvi ao Ramo duma Árvore, Cantemos este Dia de Trabalho e Não é Fácil, Senhor, a Vida que nos Deste. Aqui fica o último, que é também um belo texto acerca da condição humana:
Não é fácil, Senhor, a vida que nos deste.
Se há momentos serenos como lagos
inundados de sol,
também há a selva escura,
infindável e escura, de muitas horas
que cansam e fazem doer a alma.
Há longas esperanças que, depois
de levarem o melhor dos nossos sonhos,
desabam de repente.
Há o fracasso, o desânimo
e a insegurança de tudo quanto nos vem às mãos.
Não é fácil, Senhor, a vida que nos deste.
Luta-se muito, temos de lutar,
todos os dias, por qualquer coisa,
qualquer coisa que acaba por nos fugir,
como se a vida se reduzisse
a um puro jogo das escondidas,
como se nos criasses apenas
para te servirmos de passatempo.
Não é fácil, Senhor, a vida que nos deste.
Por isso, muitos corações
se vão assemelhando a pequenos pântanos
onde se desenvolve o limo da melancolia
ou a serpente do desespero.
Por isso as árvores do sonho
mal conseguem dar frutos
e os poucos frutos
deixam nos lábios um sabor a fel…
Não é fácil, Senhor, a vida que nos deste.
[1] Cf. CABRAL, A. M. Pires, Por Esta Terra Adentro. Páginas Trasmontanas, 1.a edição, Lisboa, Âncora Editora, 2018, pp. 299‑320, em particular pp. 309‑310.