Antero de Figueiredo, Jornadas em Portugal

Vigésimo sétimo texto da série Autores que cantaram o Douro

1. Antero de Figueiredo nasceu em Lourosa — creio que se trata da povoação com esse nome situada no concelho de Oliveira do Hospital —, em 1866, e morreu na Foz do Douro (Porto), em 1953. Cursou Medicina em Coimbra, mas, por problemas de saúde, parou de estudar. Andou pela Europa (Espanha, França, Suíça e Itália), trabalhou para um diplomata brasileiro em Washington e regressou ao Velho Continente. Em Lisboa, corria o ano de 1895, formou‑se em Letras. Dedicou‑se à escrita (novela e romance, incluindo ficção histórica; relatos de viagem; poemas em prosa; teatro), chegou a dirigir a Escola de Belas‑Artes do Porto.

Alguns textos de António Figueiredo espelham a conversão do autor ao catolicismo e a defesa da sua nova fé.

2. Em matéria de literatura odepórica, Antero de Figueiredo é um dos santinhos do meu altar. Aprecio a sua sensibilidade plástica, o estilo enxuto, as descrições em que associa simplicidade e erudição. Recordações e Viagens, Jornadas em Portugal, Espanha e Toledo são livros que me inspiram desvelo.

Jornadas em Portugal foi dado à estampa em 1918. No que respeita ao seu fragmento inicial (Viajar, Recordar…), diversos pontos merecem aqui referência.

Primo, a ideia de «demorar por gôsto em aspectos de viagens idas»[1]. Redigir um escrito de viagem prolonga o prazer que senti ao fazê‑la e traz‑me um brinde: uma certa intelectualização da viagem. Isso contribui para que esta seja fecundante, para que também eu guarde registo de «cantos lindos da terra, que entraram em mim e em mim floriram»[2].

Secundo, a perceção de que «não é preciso viajar por longes terras para viajar dilatadamente»[3]. A Bélgica, país onde vivo, não está e nunca estará entre os países mais procurados pelos viandantes. O plat pays é, porém, um daqueles em que giro com mais gosto. É fácil voltar a um local, não tenho de o apreciar à pressa. Posso levar comigo os calhamaços em que se minudenciam os encantos do respetivo património cultural. Não me desgasto em aeroportos e em aviões, mantenho o espírito fresco e aberto ao que há para ver.

Tertio, uma observação de alcance geral, que me toca na matadura e, no mesmo passo, me faz ter orgulho naquilo que sou: «É tão fácil ser bom entre justos, quanto difícil ser calmo entre maus que irritam a vida, tecendo‑a e torcendo‑a de ruindades.»[4] Cresci ferido pela violência doméstica de que fui vítima, às mãos de um tresloucado. Ainda assim, nesse quadro horripilante e duradouro, consegui manter a calma.

3. Por mor do tema da série em que a presente deposição se encaixa, destaco, dos restantes 16 capítulos do livro em apreço[5], Terra de Miranda e São Mamede de Riba Tua.

Nalguns parágrafos de Terra de Miranda, Antero de Figueiredo foca‑se no cenário, no elemento natural:

«Vindo do Pôrto, atravesso o Baixo‑Douro — que é um Minho de campos menos retalhados, de verdura menos fôfa, de côr menos uniforme, de claridade menos crua. A luz, mais grave, valoriza os vários azúis dos montes com suas escarpas e quebradas; os verdes delicados das árvores de qualidade; os verdes fortes das copas dos pinheiros, penetradas de sombras; as massas escuras dos seus troncos violáceos; os castanhos vermelhos das telhas velhas sôbre brancuras de fachadas entre terrenos amarelentos e céus azulinos; e os tostados quentes dos taludes de saibro. A fisionomia da paisagem acentua‑se. Há carácter. Os oiteiros começam a transformar‑se em montes; os vales alargam‑se e afundam‑se; os horizontes distanciam-se. Serras ao longe.

Estamos em fins de Abril. A primavera, andada de um mês, ilumina o ar com as copas lilases e brancas das cerejeiras e das macieiras; com as hastes finas, direitas ao céu, das ameixoeiras, borbulhadas de rebentos de flores alvas; — árvores beirando campos verdecidos de trigo serôdio, ou lameiros geados pelas toalhas das margaridas de neve. As giestas afitam‑se de branco, e os tojos pontilham‑se de revoadas de borboletas amarelas. Para alêm, montes de margaça lilás parecem montes de mosto. Agora, pinhais espessos e vales fundos.»[6]

Gosto mais do trecho relativo ao Alto Douro. «Do Corgo para cima, é Alto‑Douro:
— chão de xisto esfarelado pelo ar, pelo calor, pelo trabalho mortal da enxada, bidente e sarrada, do cavador‑escravo, que, de sol a sol, debaixo da saborreira calcinante, curvo, fincado no alvião, com a pele a escaldar e a luzir de suor, o corta, o espedaça, o pulveriza, convertendo a pedra em terra — em humo aspérrimo de que as raízes das cepas se alimentam com voracidade infernal, como plantas do diabo que exigissem, para seu sustento, o fogo da terra e o suor dos homens. A terra escalda; o ar queima. Secam as fontes, ardem os montes. Não há uma sombra de arbusto, nem um pingo de água. Há sessenta graus de calor do inferno, sêde, sezões, dor, morte. ¡Uma gota de vinho custa todo o suor de um homem!»[7] Agora, o autor põe em evidência o Douro humano, a árdua faina do trabalhador braçal e as condições penosas dos seus meneios.

Em São Mamede de Riba Tua, Antero Figueiredo descreve o alfoz a que foi buscar o título do texto e, sobretudo, procede a um registo emotivo e apologético da obra de António Teixeira Lopes (1866‑1942), escultor que visivelmente admirava e que acolá passava umas temporadas.

Antero de Figueiredo menciona, designadamente, a empresa de Teixeira Lopes que tem por objeto crianças, raparigas, velhos, santos — Santo Isidoro de Sevilha, Santa Isabel — e figuras alegóricas (Caridade).

Quando refere a modelação dos infantes por parte do artista, Antero de Figueiredo excede‑se, recorre a palavreado supino. «Teixeira Lopes é, essencialmente, o escultor da ternura portuguesa no que nela há de mais profundo e feminino: o amor aos filhos, o carinho pelos pequeninos, que só as mães sentem e os artistas bons entendem. O Espírito‑Santo dêste poeta desceu num raio de sol côr de rosa, que lhe tocou a alma e lhe ameigou as mãos no ensino afectuoso de moldar tenras carninhas onde mora a frescura das almas que não atravessaram ainda o paúl do mundo mau. Teixeira Lopes é, no barro, o Corot das telas das madrugadas do sol a nascer. Os meninos do escultor são as manhãs do pintor. Corot pinta a luz da alvorada através de brumas; Teixeira Lopes modela o clarear da vida na luz indecisa da infância.»[8]

Visitei o Museu Soares dos Reis, no Porto, em julho de 2024. Na retina e no espírito guardei Infância de Caim, obra de Teixeira Lopes na qual traços ainda pueris convivem com urdidura de ato perverso. Empregando termos de Antero de Figueiredo, direi que o rapaz se prepara para entrar no paul do mundo mau. Fiquei a saber, pela leitura de São Mamede de Riba Tua, que a figura deste Caim foi inspirada num gaiato dessa terra[9].

António Teixeira Lopes, Infância de Caim, 1890, mármore de Carrara (Museu Soares dos Reis, Porto)

[1] FIGUEIREDO, Antero de, Jornadas em Portugal, Paris‑Lisboa, Rio de Janeiro, Livrarias Aillaud e Bertrand, Livraria Francisco Alves, 1918, p. 8.

[2] FIGUEIREDO, Antero de, ob. cit., p. 9.

[3] FIGUEIREDO, Antero de, ob. cit., p. 11.

[4] FIGUEIREDO, ob. cit., p. 12.

[5] Portugal, Terrinhas e Coisas Portuguesas, Braga Antiga – A Procissão dos Fogaréus, Trancoso, O Coração do Minho, Terra de Miranda, São Miguel de Seide, A Caminho de Barroso, Penacova, São Martinho de Bornes, São Mamede de Riba Tua, Braga Antiga – O Braguês, Leça da Palmeira, A Terra‑Negra, Bussaco e Portugal Velho – O Morgado de Sabariz.

[6] FIGUEIREDO, ob. cit., pp. 125‑126.

[7] FIGUEIREDO, ob. cit., pp. 128‑129.

[8] FIGUEIREDO, ob. cit., pp. 261‑262.

[9] Vd. FIGUEIREDO, ob. cit., p. 278.

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