Aniversário, balanços, preocupações

Aprecio a tarde da vida e gozo as venturas da maturidade. Preciso de retiro e de reclusão, mas sou um observador atento daquilo que me rodeia e do mundo. Entre os recursos que para mim são indispensáveis, conta‑se a assinatura da edição eletrónica de diversos jornais de qualidade (portugueses, europeus, dos Estados Unidos e do Brasil).

Em janeiro fiz anos. Tal marco levou‑me a insistir em balanços, a relembrar o que me desassossega.

As avaliações relativas aos tratos de casal, guardo‑as para mim e para a Jūratė. Ainda no círculo privado, orgulho‑me de ter saído indemne dos anos de uma infância e de uma adolescência marcadas pela violência doméstica de que fui vítima. Bem assim, um dos meus maiores conseguimentos foi cortar relações e contactos com a maioria dos membros da minha família, que inclui moralistas, pessoas invejosas, peças de mau jaez e, pelo menos, duas criaturas patologicamente perversas. Não há, porém, nenhum primo ou prima de que me haja desafeiçoado e gosto mesmo muito de quatro deles, que tenho por amigos. Na academia, ante o complô que um ser‑vómito montou no sentido de eu reprovar nas minhas provas de doutoramento, soube manter a lucidez e achar forças que desconhecia ter. Fui aprovado sem a classificação que merecia, mas o que passei e o jeito como o superei deu‑me uma carapaça para a vida.

Quanto à esfera pública e ao mundo, atormentam‑me as agressões ao meio ambiente, o desregramento climático, o aumento do número de pobres e de pessoas em estado de carência, a quantidade de gente que já não respira fora das redes sociais e do mundo virtual.

No que toca à guerra na Ucrânia e ao conflito em Israel e na Palestina, creio que há demasiado eriçamento bélico e que não vêm sendo feitos os esforços necessários para encontrar uma solução política. A história e a realidade são complexas, não cabem num par de linhas, mas, no que à Palestina diz respeito, penso que só poderá haver paz se o governo israelita tiver ao leme os moderados de esquerda, do Partido Trabalhista.

Tudo indica que Joe Biden e Donald Trump disputarão a presidência dos Estados Unidos da América, país com enorme influência no planeta. Respeito Biden, mas denota sintomas de incapacidade para ocupar o cargo. Os Democratas não têm ninguém mais novo e com valor? Acerca de Trump e do perigo que ele representa, nem sequer vale a pena falar.

Na Europa e no continente americano, preocupam‑me os enxovalhos de que a democracia tem sido vítima e a ascensão da extrema‑direita. Implícita ou explicitamente, esta propõe um projeto totalitário. Muitos dos que nela votam não são fascistas e nem saberão o que é o fascismo, pretendem apenas destruir a democracia e a ordem instituída (para depois atearem proclamas securitárias). Grande parcela dos seus votantes preza a boçalidade e os maus modos, tem asco ao saber, ao conhecimento e às elites (esquecendo que é a elite económica, nunca a cultural, que financia a extrema‑direita). Tudo isto é reflexo de uma comunidade pouco exigente.

A degradação da res publica é consequência do défice de calibre dos seus atores principais e também de um tipo de jornalismo que não é digno desse nome, um jornalismo que privilegia a palhaçada, encara a política como um espetáculo e pratica, sem critério, tiro aos pombos. Uma atividade desenvolvida sem meios e sem tempo para investigar.

Com inquietude acompanhei a crise no Global Media Group, que reúne média de qualidade. Gostaria que o Estado outorgasse novos benefícios fiscais a quem compra jornais, que adquirisse espaço publicitário nos meios de comunicação social e que, mediante seleção e à semelhança do que faz no domínio das artes, apoiasse diretamente os mass media que apresentem trabalho útil em termos de interesse público.

Já o disse, repito‑o: o publicismo sério é essencial para a sobrevivência da democracia. E aproveito o ensejo para referir que, apresentando e cotejando os programas dos principais partidos concorrentes às eleições legislativas de março, o semanário Expresso prestou um serviço público relevante.

Leitor, permaneça de atalaia. A democracia não é um dado adquirido, o totalitarismo e a ditadura não são compatíveis com a dignidade do ser humano. O Estado de direito é o último dos nossos resguardos e a democracia tem um valor inestimável, é o melhor dos sistemas políticos, o único conciliável com a respeitabilidade que a todas as pessoas é devida.

Adenda

Eis a lista de publicações periódicas que assino, elas são alimento para o espírito e concorrem, de maneira decisiva, para a minha formação cívica: Expresso; Público; Setenta e Quatro; El País; El Mundo; Libération; Courrier International; The Guardian; Folha de São Paulo; The New Yorker; The New York Times.

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