Agustina Bessa‑Luís, Os Incuráveis

Vigésimo segundo texto da série Autores que cantaram o Douro

1. Agustina Bessa‑Luís (Vila Meã, Amarante, 1922 – Porto, 2019) é um dos grandes prosadores da literatura portuguesa. Dedicou‑se à escrita, interveio na vida pública, integrou a Alta Autoridade para a Comunicação Social, foi diretora d’O Primeiro de Janeiro e do Teatro Nacional D. Maria II. A região do Douro, que conheceu logo nos verdes anos, deixou marca na sua obra.

2. Os Incuráveis tem duas partes, Os Retratos e Os Irmãos, e foi publicado pela primeira vez em 1956. Os respetivos parágrafos são extensos, o texto está recheado de digressão, Agustina Bessa‑Luís transporta o leitor para o orbe da burguesia rural.

É um calhamaço com rico desfiar de pessoas, dos seus sentimentos e motivações, centrado nas famílias dos membros do casal formado por Alberto Cales — oriundo do Douro, fora morgado de casa abastada — e por Petronila, que tinha origem castelhana. Agustina Bessa‑Luís traz para a ficção a sua própria família: Petronila representa a sua avó materna, Lorenza. Os Incuráveis contam a história de uma aliança entre duas formas de sentir e de viver, de duas nações e da sua possível convergência[1].

Na sequência do juízo crítico negativo a respeito do seu segundo livro — Os Super‑Homens (1950) — e do sofrimento que isso lhe causou, e depois do êxito de A Sibila (1954), a autora sentiu que se deveria acautelar e, para o efeito, conhecer a estrada que havia atrás de si: «Mirar de frente a los seres queridos y entenderme con ellos, sondeando la parte incurable de nuestras relaciones en la que el amor siempre salía perdiendo; perdiendo, para dar paso al resentimiento y a la aversión, para hacer sitio a la cólera y la tristeza. La tranquilidad, el amor declarado y vivido, me parece peligroso; yo intentaría acercarme a él sólo a través de infinitos y evasivos ambientes, cosas y personas. Fue así como escribí Los incurables[2]

3. Os Incuráveis é um livro de pessoas, mas contém descrição da terra duriense, atente‑se nos próximos dois parágrafos.

«Gervide e o lugar de Cales ficam numa dessas plataformas aplainadas entre as vinhas, que é onde se situam todos os povoados e vilas do Douro. Sobre as encostas riscadas pelos muros mal equilibrados de xisto e nos quais derramam uma sombra angustiada e poeirenta as oliveiras que circundam as vinhas, surgem esses lugares que têm a secura duma aldeia da Sardenha, e onde uma mal esculpida pedra de armas sobre um casebre faz cismar numa permanência de nobres de cabeleiras de rabicho que viajavam em liteiras estreitas como confessionários, trazendo consigo uma comitiva de mulheres orgulhosas cujas saias cheiravam a urina e a verbena, de padres empanturrados de assados e doces das clarissas, de camareiras leitoras da buena‑dicha e cirurgiões que coscuvilhavam as notícias dos tratados com Inglaterra. Gervide, onde em tempos tiveram residência descendentes do próprio marquês de Pombal, cheia de casas arruinadas em cujas pedras há esculpidas carrancas de cachorro amaciadas pelos anos e em cujas fendas fazem nicho as sardaniscas, possuía, quando aí se criou Alberto Cales, apenas um rasto da sua tradição nas figuras de dois velhos, Magna e D. Teodósio, que se aproximavam dos sessenta e viviam em pleno século xvɪɪɪ, com as suas bouças com faisões e caruma que submergia um homem até aos joelhos; eram muito parentes dos senhores de Fontes, cujo palácio era distante um dia de caminho, no Alto‑Douro, sobre as alcantiladas vinhas requeimadas pela filoxera e ao fundo das quais corria o rio escorado entre fragas cor de chumbo. De Gervide não se via o rio.»[3]

«Muito novo, como eu dizia, Alberto Cales estava rico. Acostumado à azeda vigilância de Alexandra, sua mãe, ou às cândidas recomendações de avó Flávia, viu‑se de súbito senhor duma porção de dobrões, de terras em que a cepa se debulhava em oiro, como o burro mágico; aquilo atordoou‑o um pouco, lançou‑se numa vida perdulária, e a Régua, antro de marmanjos, filhos‑família cultivadores de bastardos, de folias, e onde o comércio dos vinhos implantava essa lei proibida e febril que preside às terras de intercâmbio, sejam feitorias de Roma ou cidades do Oregon, arrastou‑o para o seu ventre e, em pouco tempo, perdeu todos os haveres. Da aristocrata Canelas tinha aos poucos escorregado a importância para essa vila suja, em cujas valas se via o estripado das sardinhas, e cuja alma palpitava nos cais atulhados de cascos que seguiam nos barcos até ao Porto. Essa Régua, percorrida por galegos que vendiam rendas, e que, com as suas fortunas contempladas todas as noites com religiosidade a uma luz de sebo, desbancariam os nobres das ruas musguentas do Peso; essa vila, onde corriam peixeiras talvez mais tarde dignas de desafiar um Nucingen e o seu génio financeiro, absorveu durante um ano Alberto Cales, devorou‑lhe as suas libras, escorreu‑o de todos os bens e lançou‑o de si como um desperdício, agindo assim como esses mecanismos diabólicos, sinais da era da técnica, que dum fruto extraem toda a utilidade e mesmo dum homem esfolam a pele, derretem a gordura, com a ferocidade grotesca das coisas automáticas.»[4]

4. Desse livro tão cheio daquilo que afina a conduta do comum dos mortais, reproduzo em seguida um trecho, relativo a Alexandra — procurava noiva para o seu filho, Alberto Cales —, que me parece pão para o espírito e que me encanta pelo humor e pela erudição:

«Foi Alexandra quem, espevitada a sua cobiça e o seu génio de intriga, lançou por toda a província os seus lázaros, as suas alcoviteiras de cozinha, os seus abadezinhos pegureiros que regiam paróquias desde as faldas do Marão até aos pedregosos ermos do Alto Corgo. Em breve ela não ignorava os legados e as perspectivas de todos os partidos favoráveis, conhecia todas as raparigas de quem o povo, perante o curso promissor da puberdade, diz “que se estão a criar”. Sabia quais as ricas e meladas musas que debicam e pelam castanhas cozidas, sentadas nos poiais das salas tristes onde há velhos candelabros de Sèvres com marquesas de minuete; quais as doutas, as que tocavam piano ou aprendiam banjo e falavam com os olhos rasos das aventuras d’As Duas Órfãs; quais as prudentes, as que viviam distribuindo rações de arroz de feijão‑frade aos jornaleiros e que segavam velozmente o caldo‑verde e bailavam nos cobertos quando chegavam as rogas e iam para os lagares abraçadas nas criadas, rindo, com uma bruta licença muito próxima da ingenuidade, das obscenas chalaças dos homens. Sabia quais as que possuíam tineta para os amores, para negócio, para a ruína; quais as que gostavam de ler La Vie Heureuse e suspirar, com um pasmo melancólico, diante das belas noivas de magnates do carvão ou das divas de teatro nos seus boudoirs arábicos, com panóplias e peludas alfombras e reposteiros listrados; e as que apenas desfaziam as tranças ao sábado e se abanavam sob as figueiras, com a costura abandonada no regaço, empanturradas de manjar‑branco, de caldo de ovos, de peixe recheado de queijo e que vinha em cestos de vime nas diligências e se pagava a peso de oiro. Esta era glutona, aquela batia nas criadas, outra vestia‑se garridamente, mais outra desfolhava malmequeres havia trinta anos porque era impiamente pobre.»[5]

Ao passo que retalha as criaturas que povoam o romance, Agustina Bessa‑Luís vai largando verdades universais ou semiuniversais a respeito dos humanos. A autora diz que «os escravos não gostam de ser irmãos perante os senhores, gostam de ser preferidos»[6]. Lastimei conhecer criaturas, sobretudo no meio universitário, que à solidariedade interpares e à emancipação — bem como à espinha dorsal que a última requer — preferem a persistência na condição servil e o esforço no sentido de obter o favor do amo, do amo que nelas põe as patas.

Outro exemplo toca «os homens de quarenta anos que esperam cair no casamento como num cadeirão de molas»[7]. Hoje, não será essa a expetativa da maioria dos varões, mas acredito que no passado assim fosse. Acodem‑me à memória palras que tive com indivíduos adultos, há vinte ou trinta anos, senti que, do vínculo matrimonial, não esperavam outra coisa. Também nesse tempo — não deve ser coincidência — percebi que à interlocução com um homem prefiro aqueloutra que tem lugar com uma mulher.

5. Admito que Agustina Bessa‑Luís seja uma romancista genial, brilhante na descrição das pessoas e do que lhes vai na alma, percuciente nos retratos das famílias e na caraterização da atmosfera, por vezes irrespirável, em que elas se movem. Com ela aprendo muito, mas o prazer que sinto ao lê‑la é intermitente, cansa-me o rumo desultório da narrativa. Só o leitor cadimo pode apreciar, em suas reais tintas, a prosa de Agustina; talvez esta seja um modelo do verdadeiro escritor, entendido como autor de obras cujo enredo leva refolhos e cuja leitura exige muita concentração, empenho e paciência.


[1] BESSA‑LUÍS, Agustina, «Los incurables. Revelación y creación», in BESSA‑LUÍS, Agustina, Contemplación cariñosa de la angustia, tradução de Maria Bolaños e José Dias‑Sousa, Valladolid, cuatro, 2004, p. 23.

[2] BESSA‑LUÍS, Agustina, ob. cit., pp. 25‑26 (o excerto transcrito encontra‑se na página 26).

[3] BESSA‑LUÍS, Agustina, Os Incuráveis, prefácio de João Bénard da Costa, 3.ª edição, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2020, p. 40.

[4] BESSA‑LUÍS, Agustina, últ. ob. cit., pp. 41‑42.

[5] BESSA‑LUÍS, Agustina, últ. ob. cit., p. 45.

[6] BESSA‑LUÍS, Agustina, últ. ob. cit., p. 31.

[7] BESSA‑LUÍS, Agustina, últ. ob. cit., p. 137.

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