Abel Botelho, O Cerro

Vigésimo texto da série Autores que Cantaram o Douro

Abel Botelho [Tabuaço, 1855 (?) – Buenos Aires, 1917] foi militar, diplomata e político. Deixou colaboração em publicações periódicas, escreveu poesia, conto, guiões para peças de teatro.

O autor representou em Portugal o naturalismo inspirado na escola de Zola[1] e distinguiu‑se como romancista, designadamente através das obras que compõem o ciclo Patologia Social (O Barão de Lavos, O Livro de Alda, Amanhã, Fatal Dilema e Próspero Fortuna). Nelas bica a sociedade portuguesa e fala dos respetivos vícios. No juízo de António José Saraiva e de Óscar Lopes[2], nada permite separar tal ciclo de outros escritos do autor, a saber, Sem Remédio, Os Lázaros e Amor Crioulo.

Mulheres da Beira é o título de um livro, dado à estampa pela primeira vez em 1898, no qual se acham reunidos contos escritos entre 1883 e 1896.

Um deles é O Cerro, de 1896, que tem como (desditosos) protagonistas Duarte de Sousa Pinto Osório, alma generosa e «um dos fidalgos de mais nomeada e tomo de toda a comarca de Armamar»[3], e as suas filhas, Maria e Teresa. É um drama passional que bem prendeu a minha atenção. Nele respiguei, como nota especialmente forte e acerba, o desvio de personalidade que afetou Teresa depois de ela ter sido abandonada pelo jovem por quem se perdera de amores.

Ilustração de Rui Palma Carlos. A jovem nela representada é Teresa

Para aqui transcrevo dois excertos do conto em apreço, próprios do cálamo de Abel Botelho.

«A região riquíssima do Douro vestia o seu ar mais característico. Os pâmpanos ruborizavam‑se, as cepas vergavam ao peso de chorudos cachos de ametistas, as folhas tinham a espaços na cor abrasadas recordações dos poentes do último Agosto, os xistos lascavam‑se calcinados, a terra esboroava‑se, das largas figueiras choviam sombras perfumadas… na ininterrompida sequência dos caprichosos morros, colinas, montanhas, plainos, precipícios, todos paralelamente regrados de alto a baixo em cerradas várzeas de pedra, palpitavam os minúsculos tons vistosos, movediços, dos vindimadores — e a horizontalidade gloriosa dos seus degraus, alternadamente cinzenta e verde, assim triunfalmente aprumada para o Infinito, expluente do rubro dos saiotes das “apanhadeiras”, risonha da alvura das camisas dos “carregadores”, vibrante das canções dos vários grupos tresmalhados, lembrava um imenso trono gratulatório, todo aceso, adornado e erguido numa apoteose em louvor da Natureza.

Como se confrange dolorosamente o coração dos que vão hoje procurar ao Douro a emoção entusiástica do seu passado glorioso! Que espantoso contraste, que doloroso silêncio, que medonha desolação!

Toda aquela imensa orografia, revolucionada e áspera, de há poucos anos ainda regularmente vestida de uma verdura compacta e rasteira, hoje ergue desesperadamente para um céu impassível as suas calvas proeminências cor de fogo. A braveza e a aridez mais completa imperam ali quase absolutamente. Terrenos barrentos, avermelhados, secos e fendidos como as paredes de um forno, arredondam‑se pelo dorso de montanhas e montanhas sem fim. É uma terra calcinada e maldita; nem o mato se atreve a cobri‑la; apenas, em ténues agulhas douradas, pequeninas gramíneas se lhe descobrem numa ou noutra vertente, muito a medo. A espaços, vêem‑se rolar de várzea em várzea grandes calhaus de xisto pontiagudos, no descalabro eloquente do abandono. A bordadura deliciosa de pomares, que outrora guarnecia, junto aos regatos, a fímbria dos outeiros, carregada e luzente como uma larga guarnição de cetim verde, mirrada pela sede, desapareceu quase por completo… E é agora que o caminho‑de‑ferro, como uma pungentíssima ironia póstuma, se lembra de vergastar com o seu silvo de troça a ressequida desolação daquele país falido!»[4]

No trecho precedente predomina a terra, a paisagem. O segundo fragmento emana da grei, dos elementos que compunham a roga que se aproximava da Quinta do Cerro, nele assinalo a sonoridade e a visualidade.

«Efectivamente, ali já a bem poucas centenas de metros, vinha avançando pelo caminho de Tabuaço um ruidoso rancho de homens e mulheres, cantando, tocando e dançando endiabradamente. Ouvia‑se‑lhes distintamente o “tlintlim” dos ferrinhos, o cavo ribombo do zabumba, um ou outro guincho mais estrídulo, e até a espaços o sapatear ferrado dos dançarinos sobre as fragas do caminho.

Avançavam turbulentos, estúrdios, brutais, electrizados, na frente uma dupla fila incansável de dançarinos — berrando e pinchando de braços ao ar, castanhetas nas mãos, brejeiras aproximações de ventres a cada volta e os quadris saracoteados; — depois, alinhada, a orquestra — bombo, ferrinhos, rabeca e o violão —, executando a “chula” clássica das vindimas; depois em confusa multidão o grosso do bando, homens de jaqueta ao ombro e sacos às costas, pendentes de longos varapaus; mulheres de cestos à cabeça, onde avolumavam pães de centeio incomensuráveis, negros e rijos como pedras, o garfo de estanho espetado a um lado, e por cima, enterradas entre a verga e o pão, as tamanquinhas.»[5]


[1] Cf. SARAIVA, António José/LOPES, Óscar, História da Literatura Portuguesa, 17.ª edição, reimpressão, Porto, Porto Editora, 2017, p. 893.

[2] Ob. cit., p. 893.

[3] BOTELHO, Abel, «O Cerro», in BOTELHO, Abel, Obras de Abel Botelho, escorço biobliográfico e estudo linguístico de Justino Mendes de Almeida, volume II, Porto, Lello & Irmão, 1979, p. 439.

[4] BOTELHO, Abel, ob. cit., pp. 433‑434.

[5] BOTELHO, Abel, ob. cit., p. 437.

Imagem de uma roga que se encaminha para os vinhedos do Alto Douro, em 1951. Foto: Hulton‑Deutsch Collection/CORBIS/Corbis (fui buscá‑la a cnnportugal.iol.pt)
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