Sexto texto de uma série baseada na viagem, devotada ao património cultural, que fiz no Sul da França (Costa Azul e Provença) durante o verão de 2025
1. Em 1926, o arquiteto romeno Jean Badovici comprou um pedaço de terra situado ao pé do mar, numa encosta de Roquebrune‑Cap‑Martin. Aí fica a vivenda E 1027, de 1929, projetada pela irlandesa Eileen Gray — desenhadora de móveis e de artigos para decoração, e também arquiteta autodidata — e por Badovici. O E vem de Eillen, 10, 2 e 7 correspondem a J (de Jean), B (de Badovici) e G (de Gray), décima, segunda e sétima letras do alfabeto.
Um canalizador de Nice, Thomas Rebutato, adquiriu um terreno próximo dessa moradia e nele levantou uma pequena estrutura na qual pretendia guardar equipamento de pesca. Acabou por abrir aí um bar, o L’Étoile de mer.
Um dos seus primeiros clientes foi Le Corbusier, que frequentava a casa de Badovici, a E 1027. Em 1952 e em 1954, respetivamente, o celebérrimo arquiteto franco‑suíço fez construir uma cabana de madeira adossada ao estaminé de Rebutato e, não longe dela, um barracão que lhe serviria de ateliê.
A dois passos do L’Étoile de mer, foi plantado, em 1956, um conjunto de cinco unidades de alojamento concebidas por Le Corbusier para Rebutato, que as arrendaria a quem por ali feriasse.
Hoje, todo esse globo pertence a um organismo público, o Conservatoire du littoral, e é gerido pelo Centro dos Monumentos Nacionais. Os descendentes de Rebutato guardam, porém, o usufruto da casota onde funcionou o botequim e, pelo menos durante o verão, ela não é visitável.


2. A vivenda E 1027
Inspirada na talhadura de um navio transatlântico, a E 1027 é branca, sóbria, associa funcionalidade, luminosidade, higienismo e atmosfera descerimoniosa. Consideram‑na uma obra‑prima da arquitetura modernista. Entre as soluções engenhosas e práticas que lá vi, refiro a mesa de cabeceira desdobrável no quarto de dormir principal.
Em linha com as sugestões vindas do universo marítimo, um dos tapetes que Gray desenhou para a E 1027 exibia ondas estilizadas, um compasso e uma boia. Na varanda da fachada que abre para o mar está pendurado um espécime do corpo flutuante.
A edificação da moradia teve em conta os cinco pilares da arquitetura moderna enunciados por Le Corbusier: base de pilotis; planta livre (supressão de paredes portantes no interior, que assim é passível de adaptação à personalidade de quem vive ou trabalha in situ); fachada livre (porquanto as paredes que dão para o exterior deixam de suportar a carga estrutural do edifício, função agora deferida aos pilotis e aos pilares internos, as fachadas desembaraçam‑se de obstáculos à criação dos arquitetos); janelas largas e dispostas em faixa horizontal; topo com área plana, que se pode ajardinar.
Eileen Gray apreciava o movimento De Stijl e o modo como, através da cor, ele jogava com o espaço. Nas obras de restauro da E 1027 deram com vestígios do recurso a várias cores (azul, amarelo, castanho, rosa), decerto usadas com semelhante intuito.
Le Corbusier pintou frescos em paredes da habitação, alguns sumiram na fogueira de vicissitudes do tempo, pelo menos um acha‑se escondido para não turvar o conceito que Eileen Gray quis aplicar na casa. Em 1932, a desenhadora irlandesa afastou‑se de Badovici, que arranjara nova amante. Em 1948 ou em 1949 ela descobriu, por via de uma publicação escrita, os ditos trabalhos murais de Le Corbusier. Ficou furiosa — entendeu que o pincel do arquiteto adulterara a sua empresa e esse foi um dos motivos que a levaram a nunca mais pôr os pés na E 1027 (cuja construção financiara).
Sou admirador do Corbu, mas creio que Gray teve razões para se sentir ofendida. Aliás, uma das pinturas em apreço ocupa parte da parede da entrada da residência, parede que ela quis nua a fim de prolongar o mistério acerca daquilo que se veria na mansão.


3. A cabana de Le Corbusier
A cabana de madeira que, em 1952, Le Corbusier adossou à casota onde funcionava o bar L’Étoile de Mer era, sobretudo, um pouso para ele e a mulher dormirem. As refeições e o convívio com os amigos decorriam na locanda, os duches eram tomados ao ar livre e, a partir de 1954, o arquiteto passou a dispor de um estúdio próximo da cabana. Esta era um presente oferecido à consorte, que, por problemas de saúde, com dificuldade caminhava até à vivenda onde, anteriormente, o casal arrendava um quarto.
A cabana tem mobiliário funcional e é louvada pelos doutos. Haverá ali muitos méritos, mas não me agradou. Na falta de cama para dois, Le Corbusier dormia num colchão estendido no pavimento e a sua mulher num móvel estreito (repugna‑me chamar‑lhe cama), com a cabeça à beira da retrete.


4. Gostei da visita à casa E 1027, à cabana de Le Corbusier e a uma das coloridas unidades de alojamento outrora exploradas por Thomas Rebutato.
Sei que foram erguidas para satisfazer pretensões distintas de pessoas com índole diversa (Badovici, Le Corbusier, Rebutato) e estou certo de que, se tivesse olho de arquiteto, lobrigaria artes e méritos que me passaram despercebidos.
Mas a verdade é que o passeio não me encheu as medidas, no meu espírito pesou a desarmonia do conjunto.

