1. A Villa Majorelle irradia arte nova em todas as direções. Foi concebida por um arquiteto parisiense, Henri Sauvage, e edificada entre 1901 e 1902. O dono da obra era Louis Majorelle, figura de proa da Escola de Nanci, empresário e artesão especializado no manuseio da madeira e do metal. O palacete servir‑lhe‑ia de residência e de vitrina destinada à exposição dos objetos que tinha para venda, é o primeiro imóvel de Nanci onde, de maneira inequívoca e na sequência de um projeto, arquitetura e artes decorativas se interligaram. Em termos de recheio, o Museu da Escola de Nanci dá‑lhe sota e basto, mas, considerando somente o edifício, ele é o mais bonito exemplar de arte nova que vi na cidade.
Aqui escreverei acerca da sala de jantar, do salão e do quarto de casal da Villa Majorelle.
O mobiliário da sala de refeições (aparadores, mesa e cadeiras) leva a firma de Louis Majorelle e ostenta o timbre distintivo dos seus trabalhos. No entanto, são outras as preciosidades que nesse compartimento chamam a atenção: as pinturas de Francis Jourdain, emolduradas no registo superior das paredes, que recriam o universo vegetal e o mundo animal, em particular as aves de capoeira; na bandeira das janelas, os vitrais de Jacques Gruber, verdadeiro hino às colocíntidas e, apesar da multiplicidade de elementos representados, à euritmia; e o conjunto, de material cerâmico, formado pela lareira e pela chaminé — colocado no meio da sala, ajudava a separar a zona de refeições daqueloutra onde se fumava. Se fosse construído hoje, tal conjunto poderia ser qualificado de kitsch; na época, a obra de Alexandre Bigot colheu elogios.

Conquanto um só motivo ornamental, a pinha, reja o programa decorativo do salão, a este falta a unidade compositiva que se enxerga na sala de refeições. Os móveis são semelhantes aos que ali estavam quando a casa era habitada pela família Majorelle e que, alvo de reprodução em série, conquistaram o favor do público.
Se menciono o salão, é para ter ensejo de referir a lareira e, sobretudo, o ornato que a envolve e cuja forma presentifica um ómega: é peça vistosa, de madeira, que associa boas artes de marcenaria e de escultura. Nela foi incrustado um vitral de Jacques Gruber que, destruído por um bombardeamento em 1916, foi substituído por outro, de sugestão mourisca. A isso não foi alheia a influência de Jacques Majorelle — filho de Louis —, que em 1917 se fixou em Marrocos e aí consolidou a sua carreira de pintor.

Os móveis do quarto de dormir (cama, armário, cómodas e mesinha de cabeceira) saíram da mão hábil de Majorelle e, à semelhança dos que se acham espalhados pela sala de refeições, foram utilizados pelos proprietários da casa. Na sua feitura empregou‑se madeira de amieiro e, principalmente, de freixo‑do‑japão. Denotam requinte e constituem império da linha curva. Dão corpo a um todo coerente e deles se evola ligeireza, adequada à serventia do aposento. Cioso do seu canto íntimo, nunca Majorelle permitiu que eles fossem imitados e aparecessem nos catálogos comerciais.

2. Na escolha dos meus destinos de viagem, pesa cada vez mais a vontade de fugir ao turismo de massa e ao turismo desabalado, aquele que vai além da capacidade de acolhimento de um local e que lesa os íncolas e os visitantes. Esses tipos de turismo cansam‑me, turvam‑me a vista e o espírito, afetam a minha capacidade de apreciar um sítio e de pensar nele e naquilo que lhe subjaz.
Não me basta a locomoção, ainda que para terra distante, no passeio busco prazer e um sentido. Inspirando‑me em leitura da última semana, direi que declino a viagem entendida como mero andamento, procuro essoutra que seja caminho e que, inclusivamente, se insira numa vida concebida como caminho[1].
Passei dias agradáveis em Nanci, não descortinei sinais de disneylandização nem de turismo de massa. Apenas na Villa Majorelle me vi no meio de um rebanho e isso não tirou lustre à minha estada na cidade. Até ficaria feliz por perceber interesse das pessoas na moradia, no seu património artístico e arquitetónico, mas o certo é que ali topei gente de pouco discernimento, que durante o giro continuava atenta ao Facebook e àquilo que chegava através do ecrã do smartphone.
O ato de viajar não é inconsútil e, porquanto o grande número de pessoas que percorriam salas e corredores da Villa Majorelle me maçou e tolheu vontades de a interpelar, acabei por pospor, para o serão passado no nosso quarto de hotel e para o momento da escrita do presente texto, o prazer de refletir a propósito dela. É algo que se repete sempre que ando por lugares que fervilham de gente e de barulho.
3. Um dos atributos que mais valorizo na minha companheira, a Jūratė, é o facto de ela partilhar comigo a inteligência na escolha do destino, de não se deixar cegar pelas luzes de pontos turísticos que estão sobrevalorizados e que constituem ratoeiras para quem os visita. A Jūratė percebe que o paraíso apresentado em fotografia não corresponde ao que se vai encontrar in situ — na imagem faltam, designadamente, as multidões. Assim nos furtamos à aplicação da norma coletiva[2] que converte determinados lugares em sítios onde é obrigatório picar o ponto, assim mitigamos o risco de vir a padecer de síndromes do viajante, mormente da síndrome de Paris. Esta resulta do choque e da deceção que o viator experimenta e que são provocados pela diferença existente entre a ideia que ele tinha a respeito de uma paragem e aquilo que aí veio a encontrar. A designação procede do abalo emocional que, supostamente, diversos turistas japoneses sentiram quando visitaram a capital da França.
Por outra banda, e sem prejuízo de eu apreciar a evanescência e a trivialidade (no último passeio em Paris apenas fiz vida de homem frívolo), alegra‑me saber que a Jūratė não me pedirá para feriarmos em países como as Seicheles ou as Maldivas: o turquesa das águas é muito bonito, mas eu gosto é de me cultivar e de exercitar o espírito e não preciso de ir lá para criar atmosferas românticas ou para atear os fogos do desejo.
[1] Cf. MORICE, Juliette, Renoncer aux voyages. Une enquête philosophique, 1.ª edição, Paris, Presses universitaires de France, 2024, p. 15, nota 1.
[2] Cf. MORICE, Juliette, ob. cit., p. 184.