A. M. Pires Cabral, Elegia do Douro e O Livro dos Lugares

Décimo sexto texto da série Autores que Cantaram o Douro

A. M. Pires Cabral nasceu em Chacim, no concelho de Macedo de Cavaleiros, em 1941. A sua obra, de subido valor, inclui poesia, romance, conto, teatro e crónicas.

1. Elegia do Douro é o título de uma secção do livro As Têmporas da Cinza, dado à estampa em 2008. Os 12 carmes nela reunidos denotam o critério rigoroso que A. M. Pires Cabral aplica aos seus versos, versos que, sem ponta de enxúndia, apresentam de maneira especialmente feliz — por vezes de maneira vibrátil — os referentes da composição poética.

Se o autor é conhecido pelo seu jeito de pôr em palavras os lugares que estima — mormente os do Nordeste português —, no sexto poema de Elegia do Douro ele parece ir mais longe, faz seu o elemento que admira e chega ao ponto de dizer que tem rio em vez de sangue:

VI

Tenho o rio na boca.

Tenho os pés abrasados

do atrito das poeiras

imersos no bálsamo da água.

Tenho a voz extenuada de saudar

a água que nunca se detém:

salve, ó cheia de pressa.

Tenho rio em vez de sangue.

De Elegia do Douro guardei, sobretudo, a qualidade do texto poético e o registo do Douro como flume de memórias e de morte. Depois de, no primeiro poema, a ele se referir como «rio do não‑olvido», escreve A. M. Pires Cabral:

II

O Douro — o anti‑Letes,

o das extensas águas memoriais,

aquele que ostenta como troféus de caça

restos das pequenas epopeias

que gente sem nome ali cumpriu —

tratou‑me sempre com sobranceria.

Ora cerra ouvidos quando o interpelo,

ora me deixa claro insuportavelmente

que sintaxe há uma só:

a que escreve o aparo das águas

na própria superfície.

IX

A água é um destino

fraudulento.

Nela se morreu ao clarão

de sonhos imoderados.

Morte no rio: emigração

mais que clandestina,

húmido destino de milhares.

Os rios de fronteira têm esta

vocação de morte

prematura, apetecida.

Mutatis mutandis, o nono poema poderia ter como referente o mar Mediterrâneo.

2. O Livro dos Lugares e Outros Poemas foi publicado em 1999. Alguns desses lugares — a Quinta do Noval, o santuário e o miradouro de São Salvador do Mundo, por exemplo — estão localizados na região duriense. Eis o poema São Salvador do Mundo:

Salvaste o mundo, Salvador,

mas não amordaçaste

a boca deste abismo.

Fizeste bem:

dela deglutidos,

triturados dos seus dentes,

húmidos da saliva,

escolhemos sim ou não,

sem que tu forces nada.

O pensamento aqui

é mais enxada.

A. M. Pires Cabral não é o turista que vai ao belveder para apreciar a paisagem. É o vate que se dirige ao Salvador e que compõe um texto com imagens fortes e com um registo telúrico que envolve os humanos, engolidos por aquela boca gigante, triturados pelos dentes que aí se encontram, ensopados em saliva. Assim é — rectius, também assim é — o A. M. Pires Cabral dos sítios que ama.

Antes que o Rio Seque, coletânea que inclui os carmes de O Livro dos Lugares e Outros Poemas

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