Décimo quinto texto da série Autores que Cantaram o Douro
A. M. Pires Cabral nasceu em Chacim, no concelho de Macedo de Cavaleiros, em 1941. Foi professor do ensino secundário, está aposentado. É senhor de empresa de fôlego que inclui poesia, romance, conto, teatro e crónicas. Uma das dimensões que valorizo na sua obra é a geografia literária, centrada no Nordeste português.

Douro: Pizzicato e Chula foi publicado em 2004. Parturejou‑o uma viagem Douro acima, entre o Porto e Barca de Alva, que o literato fez na companhia de outros poetas. Agrupa quarenta carmes, mas talvez se possa dizer que eles formam uma só composição. O pizicato remete para os salões da burguesia e para a vertente lúdica da vida no Douro, a chula leva a pensar nas rogas e nas bagas de suor dos que se consumiram nas lides da vitivinicultura.
A. M. Pires Cabral vai mencionando o rio e também o que vê em terra, designadamente os montes e os socalcos, o comboio e a via‑férrea que acompanha o flume, um solar em ruínas, uma casa de quinta — e, junto dela, um cipreste —, aldeias (Pala, Barca de Alva), uma cidade (a Régua) e São Leonardo de Galafura, lugar que Miguel Torga tão bem cantou. Bem assim, evoca a Ferreirinha, os trabalhadores braçais — responsáveis, em grossa medida, por aquilo que torna especial a região duriense — e os ingleses que colonizaram a região.
A escrita é depurada, A. M. Pires Cabral é um mestre na arte de associar síntese e pulcritude. Denota‑o, por exemplo, Valeira:
Por alturas da Valeira
convém ser mudo.
Ou esquecer o fio das palavras.
Porque há lugares tão feitos
para a malha do silêncio,
que uma simples sílaba
apenas murmurada — embaraça.
Um dos carmes de Douro: Pizzicato e Chula intitula‑se António Cabral. É o nome de um grande poeta do universo duriense que também estava a bordo da embarcação. Nesse fragmento do livro, A. M. Pires Cabral faz referência ao António Cabral que, de maneira impressiva, cantou e louvou o povo do Douro, os assalariados que executavam as tarefas fragueiras. Eis o poema em apreço (as três últimas estrofes são magníficas):
António Cabral também vai a bordo.
Outros cantaram muito as atrevidas
intromissões de Baco
pelo destino dos homens adentro.
Mas o suor e as pragas
foi ele que os cantou, como ninguém
jamais se atrevera.
(Neste dia, porém, apaziguado
pela visão molitiva das vinhas
— sua pátria e pulmão,
seu fecundo manancial de brados —,
vai apenas nomeando
as quintas e respectivos donos.)
Depois, há aquela coisa
da ubiquidade dos poetas axiais:
seguindo em pessoa a bordo,
está em poesia em cada um dos geios
onde algum dia se produziu suor,
rugiram pragas.
Está assim connosco em duplicado,
o eruptivo poeta fraternal.
A. M. Pires Cabral não desenvolve o drama do assalariado duriense, mas não deixa de convocar os espíritos para a sua condição e para a ausência da contrapartida que ele merece. Atente‑se em Douro, S.A., texto que tem muito de genesíaco e no qual aprecio a ironia:
Três sócios.
Deus entrou com o xisto,
a meteorologia
e a Vitis vinifera.
O inglês (e similares),
com o paladar e o talento
colonizador.
O indígena, com os braços, com as mãos,
com as unhas (para arrebunhar a terra
em momentos de maior lucidez),
com as glândulas sudoríparas
— e muitas vezes com o corpo todo.
Investimento
equitativamente repartido,
como se vê.
(Os dividendos é que nem por isso.)
Depois os poetas, como aqueles sujeitos
que entram nas festas sem convite,
ou talvez melhor: como ratos,
vêm às migalhas do banquete.
Deus acha bem as incursões dos ratos.
O indígena não acha bem nem mal.
O inglês e similares acham que,
roendo os ratos a parte meramente
imaterial — por definição inconsumptível —,
não merece a pena investir
em raticidas nem em ratoeiras,
nem sequer em gatos.
Afinal de contas, a beleza
do Douro é um recurso renovável.
Deixá‑los comer, coitados. Também
os ratos precisam de viver.
Como ratos, os poetas vêm somente às migalhas do banquete, são pequenos e pouco representam quando postos em cotejo com as majestades da região.
Neste livro de viagem e de palavras molhadas, A. M. Pires Cabral põe a memória a funcionar e lembra que o flume perdeu fulgores e agitações de tempos idos. Leia‑se Espírito do Rio:
Em verdade, bem pode presumir‑se
que um dia o espírito soprou
sobre estas águas.
Depois, algo
o deve ter serenado —
alguma espécie de Xanax para rios.
Mas ainda se vêem sinais dele
nos torvelinhos onde a água se enfurece
à revelia da placidez do Douro
— apontando com o seu funil
o fundo onde está encarcerado
o revoltoso espírito do rio.
O formato de blogue aconselha a fechar agora o presente texto. A próxima publicação que aqui deixarei também será dedicada à obra de A. M. Pires Cabral, nela escreverei acerca de Elegia do Douro e d’O Livro dos Lugares.