A Escola de Nanci e o museu que lhe é dedicado. O focinho do porco

O Tratado de Frankfurt, de 10 de maio de 1871, deu força jurídica à anexação, pela Alemanha, da Alsácia e de parte da Lorena. Muitos habitantes dos territórios em causa recusaram‑se a dobrar a cerviz, a viver em terra germanizada, e fixaram‑se em Nanci, que permanecera francesa.

No sentido de responder ao fluxo de novos moradores, tornou‑se necessário construir casas, escolas e equipamentos de ordem diversa. A gente da indústria, da técnica e das artes entusiasmou‑se com os novos desafios, em especial no que tange ao arreio dos lugares de vida quotidiana e de trabalho, e transformou Nanci num centro de excelência da arte nova. Em 1901, foi criada a Alliance Provinciale des Industries d’Art, conhecida por «École de Nancy», uma associação que federava interesses empresariais e saberes de várias áreas, por exemplo, arquitetura, marcenaria, pintura, escultura, cerâmica, vidraria, vitral, ourivesaria e encadernação — a arte nova era uma arte total. Os que, através das suas obras, a representaram colheram inspiração na natureza, sobretudo na flora.

O legado desse movimento artístico — que teve nas suas fileiras, entre outros, Émile Gallé, Louis Majorelle, Antonin Daum, Victor Prouvé, Jacques Gruber e Eugène Vallin — está à vista nas fachadas e no miolo de casas, prédios e estabelecimentos comerciais da cidade e atinge o fastígio no Museu da Escola de Nanci, que em mim ocasionou autêntico coup de cœur.

No museu, a funcionar desde 1964 em propriedade que pertenceu a Eugène Corbin, homem de negócios e mecenas de artistas da escola, o acervo está disposto em period rooms, rectius, em dependências que revelam como se vivia na Nanci do início do século xx. Apesar da extravagância e do ror de coisas para ver, o globo e as partes que o integram são harmoniosos, a desmesura é bem‑vinda. Aqui deixo um punhado de referências acerca daquilo que mais me agradou.

O recheio da sala de refeições do apartamento de Charles Masson, diretor dos Magasins Réunis e cunhado de Eugène Corbin, é produto da perícia de Eugène Vallin e de Victor Prouvé. O aposento, reconstituído no museu, ilustra o conceito de arte nova enquanto arte total: em obediência a um programa, verteram‑se os respetivos cânones em todos ou em quase todos os elementos do conjunto (mesa principal, mesa de apoio, cadeiras, aparador, lareira, peças miúdas, candeeiro, pintura do teto, decoração parietal…). A linha curva e o mogno concorrem para o arranjo de um cenário rico e caraterístico do seu tempo.

A pintura do teto da sala denota apuro. Victor Prouvé, o executor, recorreu a figuras femininas para veicular os cinco sentidos: uma mulher cheira o perfume de uma flor (olfato), outra come fruta (paladar), a terceira olha para uma estatueta de Tânagra (visão), a quarta dança com um par de címbalos (audição) e a última acaricia um gato (tato).

Imagem da sala de refeições do apartamento de Charles Masson

A cama de madeira Aurora e Crepúsculo, encomendada a Émile Gallé por um magistrado, evidencia a boa capacidade técnica e a fértil imaginação do artista. Na respetiva cabeceira, um baixo‑relevo reproduz uma borboleta noturna com as asas abertas, em episódio de fim de dia. O coco direcionado para baixo sugere que o inseto se aproxima do fim da sua vida. Eis a evocação da morte e do crepúsculo.

No fundo da cama, duas borboletas diurnas, vistas de perfil e voltadas uma para a outra, exibem asas madreperoladas e pousam num ovo hialino. Trata‑se, novamente, de um baixo‑relevo. A composição encarna a vida, a nascença, a aurora.

Não é cama que eu quisesse para mim, nem sequer a considero bonita, mas é uma peça de mobiliário singular e credora de interesse.

Cama Aurora e Crepúsculo

No vitral A Leitura, de Henri Bergé, uma mulher seminua que interrompeu a leitura de um livro brinca com o gato que tem atrás da cabeça. Bergé recorreu não apenas ao mundo vegetal, mas também ao universo animal. Esta vidraça fala‑me, cativa‑me pela sua plástica e por juntar à exuberância da arte nova a sensualidade da mulher com as mamas ao léu. Aí vejo parcela grande das minhas fontes de prazer: a solitude, o erotismo, a leitura, a interação com animais — no meu caso, com uma cadela —, a troca de um ato por outro se o segundo me proporcionar maior satisfação.

Vitral A Leitura

Esporeia‑me a arte que denuncia os sátrapas e as injustiças, que se compromete com a luta política e se presta a melhorar a condição do mundo. Nalgumas criações dos artistas da Escola de Nanci enxerga‑se tal pendor: o uso da simbologia lorena serviu para mostrar desafeto pelo ocupante germânico.

Bem assim, várias obras de Émile Gallé expressam a solidariedade dele com Alfred Dreyfus, o oficial do exército francês que foi erroneamente acusado de alta traição e esteve preso durante anos (Gallé morreu em 1904 e não pôde assistir ao desagravo a Dreyfus, que ocorreu em 1906). Indico três delas, todas de vidro.

Em Os Homens Negros, um vaso com duas pegas, a cor escura predomina, com ela pretendia o artista recordar alguns dos piores traços de caráter do ser humano. No vaso escreveu «Hommes noirs, d’où sortez vous ?» e «Nous sortons de dessous terre», frases que apanhou num texto de Pierre‑Jean de Béranger e que aqui aludem à cor das togas de quem condenou Dreyfus.

Gallé adornou a Ânfora do Rei Salomão com dois selos que parecem feitos de cera. Um deles leva estampada a Estrela de David: desse modo chamou o credo de Dreyfus, que era judeu.

Menciono ainda A Figueira, um grande cálice em cuja base se topam dois versos de Victor Hugo: «Car tous les hommes sont les fils d’un [“du”, no original do escritor] même père, Ils sont la même larme et sortent du même œil.» A sério? Não parece. A calúnia e o discurso do ódio, estruturalmente antropofóbico, rasgam os ares do mundo e são prova de agressividade desviante. A sociedade técnica atual, desenvolvida, é a mesma em que se banalizou a inculpação sem fundamento, depressa difundida nas redes sociais.

No prefácio a Poeira de Paris, de Justino de Montalvão, Guerra Junqueiro fez o comentário que a seguir transcrevo. «Na alma da maioria dos homens grunhe ainda, baixo e voraz, o focinho do porco. O mundo é uma sala de jantar e um quarto de cama. Diante do milagre das coisas, diante da flôr, do fructo ou da arvore, perguntam apenas: quanto rende? Atravessam a vida, buscando oiro. Outros buscam a fé. Outros, sciencia. Justino de Montalvão nem oiro, nem fé, nem sciencia. Busca harmonia, busca Belleza.»[1]

Hoje, o focinho do porco grunhe no espírito de muita gente, e já com estridência: o suíno perdeu a vergonha. Os humanos continuam gananciosos, a dimensão da fortuna de alguns é inaudita, o número de pobres não para de crescer. Os dias estão realmente feios. Valham‑nos sítios como o Museu da Escola de Nanci para a detença no que é e sempre será bonito.


[1] Cf. MONTALVÃO, Justino de, Poeira de Paris, prefácio de Guerra Junqueiro, Lisboa, Livraria Ferreira, 1908, pp. vɪɪɪ‑ɪx.

Museu da Escola de Nanci, imagem onde sobressai o candeeiro A Noite
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