Quem for à Alsácia e se quiser nutrir com um património distintivo e ô combien enriquecedor, deverá visitar a Catedral de Estrasburgo, a Biblioteca Humanista, em Sélestat, e o Museu Unterlinden, em Colmar (nele se encontra o Retábulo de Issenheim). São esses os must‑sees para os viajantes que da dita região francesa queiram levar saber que se finca na alma.

Nos séculos xv e xvɪ, funcionou em Sélestat uma escola da latinidade cuja fama passou fronteiras. Ela mantinha laços com os centros humanistas dos Países Baixos e da Itália, os seus alunos recebiam instrução moral e religiosa, estudavam a língua e a cultura latinas, aprendiam a desenvolver espírito crítico. A escola formou diversos vultos do humanismo alsaciano, por exemplo, Jakob Wimpfeling (1450‑1528), um pedagogo cujos trabalhos evidenciam a importância da educação no imaginário humanista, e Beatus Rhenanus (1485‑1547), filólogo, historiador e editor que publicou, designadamente, escritos de Erasmo, de quem foi amigo.
A constituição do acervo da Biblioteca Humanista juntou as coleções da biblioteca paroquial — reunia livros litúrgicos e alfarrábios em uso na escola latina de Sélestat — às que pertenceram a Beatus Rhenanus. O fundo atesta a diversidade de campos do saber que cativaram os humanistas, compreende manuscritos, incunábulos (livros impressos nos primeiros anos da imprensa, até 1500) e obras postas em letra de forma durante o século xvɪ.
Entre os tesouros que a Biblioteca Humanista se orgulha de possuir contam‑se: um lecionário merovíngio do século vɪɪ em forma de pergaminho; a «Bíblia da Sorbonne», do século xɪɪɪ, com o texto da Vulgata manuscrito em carateres góticos; um caderno que Beatus Rhenanus utilizou durante os seus estudos na escola da latinidade; o Elogio da Loucura, de Erasmo, em edição de 1522; um herbário de Otto Brunfels, de 1530, talvez o primeiro com ilustrações que, de modo rigoroso, reproduzem as plantas.

O visitante entusiasma‑se com a observação dos cartapácios e com a possibilidade de folhear os calhamaços que estão digitalizados. Reconhece a importância da imprensa na satisfação da curiosidade dos que receberam educação humanista. Compreende a participação destes nas reflexões atinentes à reforma da Igreja e presta tributo àquelas vozes que se levantaram contra o comércio de indulgências. E reitera as suas preocupações relativas ao conteúdo daquilo que hoje se transmite. Ao invés do que sucedia na Renascença, agora é fácil dar à estampa e divulgar um texto. Acontece que grande fatia das peças em causa mana de quem publica por vaidade e tem mão ligeira, mas não buscou conhecimento e nunca teve verdadeiro espírito crítico.
No contexto do humanismo renascentista, Erasmo de Roterdão foi uma figura notável. Poucos dias depois do meu giro em Sélestat, li o Elogio da Loucura, redigido em 1510 e publicado, pela primeira vez, em 1511. É lavra satírica, de crítica de costumes, na qual o autor alveja diversos estratos da sociedade, em particular os teólogos e os clérigos, e que conserva a sua pertinência. Não me espanta ver hoje as falhas de caráter que Erasmo identificou, mas é curioso perceber que elas se continuam a declinar em tiques e condutas referidos na obra.
Porquanto as redes sociais se expandiram e o mercado da atenção ganhou particular relevância, a sociedade atual é, em parte, uma comunidade da ilusão, de alicerce frágil: o ser só vale em função daquilo que tem para mostrar e isso é preocupante. Já Erasmo assinalou que, «destruindo‑se a ilusão, ter‑se‑ia também destruído todo o interesse da peça, porque a caracterização e os disfarces são a única coisa que desperta a atenção do espectador»[1].
Fecho com um registo acerca da academia. Ela deveria ser a primeira das instituições humanistas, cabe‑lhe fomentar a criação e a partilha de saber. No entanto, é reino de gente tacanha e funcionalizada, que se orienta por critérios de progressão na carreira assentes no lambe‑botismo e em padrões quantitativos. Justamente aí topei com os empertigamentos, comércios, taras e manias que Erasmo menciona em Elogio da Loucura.
Faço parte da categoria que, de maneira pejorativa, alguns apodam de «burocratas de Bruxelas». Aqui, no desempenho da minha função, sinto‑me melhor do que na universidade, onde, a miúdo, esbarrava em gente sem caráter, tropeçava em criaturas destituídas de espinha dorsal e via burros a coçarem‑se mutuamente.

[1] ERASMO DE ROTERDÃO, Elogio da Loucura, tradução de António Joaquim Anselmo, prefácio de Anthony Grafton, Silveira, Bookbuilders, 2024, p. 56.