Caldas da Rainha: cerâmica e bordado

Rafael Bordalo Pinheiro, caricaturista, ilustrador, autor de banda desenhada, editor, ceramista, decorador, figurinista e criador do Zé Povinho, nasceu em 1846 e morreu em 1905. Aliava o talento artístico ao espírito crítico, a finura de observação à mordacidade.

A Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha foi fundada em 1884 e a Rafael Bordalo Pinheiro se entregou a respetiva direção artística. Nesse âmbito, imaginou formas exuberantes e transpôs o humor e a caricatura para o trabalho de barro. A sua carreira denota influência do naturalismo, de estilos de épocas anteriores (historicismo) e um sopro de arte nova.

A Rota Bordaliana presta‑lhe um tributo que dá gosto ver — acham‑se espalhadas pela cidade réplicas, de grande dimensão e produzidas pela Fábrica Bordalo Pinheiro, de obras suas e de peças concebidas por Manuel Gustavo, seu filho e sucessor artístico. Não procurei todas as figuras que integram a rota. Dentre as que vi, destaco Padre‑Cura, imagem‑motejo de um sacerdote roliço que tem uma hóstia na mão esquerda e que, com a mão direita, talvez esteja prestes a cheirar rapé.

O Museu da Cerâmica está instalado num palacete de cariz revivalista construído na última década do século xɪx por iniciativa do 2.º Visconde de Sacavém, José Joaquim Pinto da Silva. Servir‑lhe‑ia de residência de veraneio.

O respetivo acervo inclui objetos originários de Portugal e do estrangeiro. No que ao torrão luso diz respeito, o museu possui artefactos procedentes de vários centros ceramistas do país — como a Real Fábrica de Louça, no Rato, em Lisboa — e põe em destaque os oriundos das Caldas da Rainha.

Dessa terra, a mostra incluía peças: de olaria tradicional (recipientes bojudos e lustrosos, em particular); representativas da cerâmica artística do século xɪx (avultavam as de Manuel Cipriano Gomes, o Mafra — conhecedor daquilo que se fazia no estrangeiro, designadamente na França, foi influenciado por uma corrente naturalista que, na cerâmica, terá raízes no trabalho de Bernard Palissy, um ceramista do século xvɪ); produzidas na Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha e ideadas por Rafael Bordalo Pinheiro, nas quais se evidenciam as caraterísticas do seu trabalho que referi a propósito da Rota Bordaliana; concebidas pelo seu filho Manuel Gustavo, que manteve a inclinação naturalista do pai — desenhando, porém, obras mais despojadas — e a associou ao gosto pela arte nova; nascidas no ateliê, ativo entre 1892 e 1896, que o 2.º Visconde de Sacavém fez instalar na sua propriedade de veraneio onde agora funciona o museu; de António Augusto da Costa Motta (1877‑1956, sobrinho do escultor homónimo), artista de critério apurado e de sólida formação técnica, que também teve a seu cargo a direção artística da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, contribuiu para a renovação da cerâmica local e era um mestre na arte de transpor para a peça de barro a expressão visível num rosto; feitas a partir da segunda metade do século xx, nomeadamente pela SECLA, empresa que investiu na cerâmica de autor e que laborou entre 1947 e 2008.

O museu conta, igualmente, com um conjunto de miniaturas de barro executadas por Francisco Elias (1869‑1937) e por José da Silva Pedro (1907‑1981). O primeiro recriou, à sua maneira, o estilo manuelino. O segundo, funcionário da Fábrica de Loiça de Sacavém, replicou, inter alia, unidades do património edificado — português e não só —, cenas e figuras da vida popular. No interior e no exterior do palacete tampouco faltam painéis de azulejos de belo padrão, alguns deles com a firma de Manuel Cargaleiro.

O Museu da Cerâmica foi a instituição de índole cultural que, nas Caldas da Rainha, mais me cativou (mas note, leitor, que o Museu José Malhoa estava encerrado, em trabalhos de reforma). Apreciei um sem‑número de objetos ali expostos, já porque os achei bonitos, já por neles sentir um festim que convocava cor, forma e material. Assinalo: um pequeno grupo escultórico, do século xvɪɪɪ, de Clodion; de Manuel Cipriano Gomes, uma travessa em forma de peixe que espanta pela sua textura e pelos motivos da decoração, e ainda uma escarradeira‑sapo, chamativa e, ao mesmo passo, repulsiva; com berço na prodigiosa mente de Rafael Bordalo Pinheiro, o jarrão Plátanos, o prato Gaio, o pitoresco Mexilhão, a figura de movimento Saloio e as múltiplas representações do Zé Povinho; o busto do 3.º Visconde de Sacavém quando era criança, de Joseph Füller, escultor austríaco que dirigiu o ateliê instalado na quinta onde hoje se encontra o museu, e o jarrão Alegoria Marítima, igualmente originário dessa oficina; o Sapato Renascentista, de grés vidrado, obra de um kitsch que dá gosto ver e empresa de Bela Silva, artista nascida em 1966 que concebeu este sapato com salto que tem, na parte da frente, uma carranca; a miniatura que apresenta bêbados em festejo de São Martinho, de Francisco Elias, e aqueloutra, de José da Silva Pedro, que reproduz a Catedral de Colónia.

Rafael Bordalo Pinheiro, Gaio

Nesse museu que sobremaneira me agradou, no meio de tanta invenção do espírito e de tão apelativa matéria, incomodou‑me topar com um casal composto por um pamonha entediado com o que via, o Mim, e por uma tonta que repetia «é assim» e qualificava de possidónias muitas das obras expostas. Deus os havia juntado, só uma casa se estragara.

A fama da cerâmica caldense ensombrece outro ofício que, na cidade, tem pergaminhos de tradição: a arte de bordar. Segundo a estória que li e ouvi, a rainha D. Leonor, ao passar na zona, viu pessoas que se banhavam numa poça de água efervescente. Quis saber porquê e, quando soube que aquela água tinha virtudes curativas, imitou os que ali vira. Notou que a ablução lhe fez bem, que melhorou da chaga que tinha no peito. Impressionada, a rainha mandou erguer um hospital termal, a que foi anexada uma capela, no sítio do qual brotava o líquido benfazejo. Tanto o estabelecimento de saúde como o templo foram devotados a Nossa Senhora do Pópulo.

A rainha deparou‑se, todavia, com falta de recursos e decidiu vender joias e os alamares de ouro do seu manto. Enternecidas por tal atitude, as suas aias bordaram o manto com fios dourados (à puridade o fizeram). Ainda hoje, no linho branco caldense, predominam a filigrana e a cor que lembram trabalhos com ouro.

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