Quarto texto de uma série baseada na viagem, devotada ao património cultural, que fiz no Sul da França (Costa Azul e Provença) durante o verão de 2025
A Ioannis Kontaxopoulos
1. Jean Cocteau (Maisons‑Laffitte, 1889 – Milly‑la‑Forêt, 1963) deixou criação proteiforme: foi poeta, romancista, dramaturgo, cineasta, crítico de arte, pintor, desenhador e ilustrador — dos seus textos e dos livros de outrem. Entregou‑se também às lides da cerâmica e da tapeçaria.
Cocteau tomou‑se de encantos por Menton em agosto de 1955, aquando da sua ida ao festival de música da terra. Ali voltou e o maire, Francis Palmero, convidou‑o a decorar a sala de casamentos da câmara municipal, que viria a ser inaugurada em março de 1958.
Entretanto, no verão de 1957, o município de Menton pediu a Cocteau que pintasse um fresco no gabinete do presidente da câmara e que dirigisse os trabalhos de requalificação de um fortim abandonado em vista de nesse local se instalar um museu dedicado ao próprio artista. No segundo projeto, o mestre empenhou‑se até morrer, em 1963. Depois, Édouard Dermit, filho adotivo (e amante) de Cocteau, continuou a missão do pai, cumprindo as vontades por este expressas. O museu abriu ao público em 1966.
As feituras de Cocteau no edifício‑sede do município, o museu existente no pequeno forte e ainda a presença, na estância balnear em pauta, da Coleção Séverin‑Wunderman (que inclui obras do autor e que, atualmente, não se pode visitar) justificam a designação de Menton como «cidade‑testamento» de Jean Cocteau.

2. A arte de Cocteau — em especial, o lineamento curvo, a paleta cromática das pinturas murais e o jogo de símbolos a que ele recorreu — transformou a Sala de Casamentos de Menton num sítio fora do comum, onde distingo o afresco da parede fundeira e os das paredes laterais.
No primeiro, vê‑se um par de noivos: ele tem olho‑peixe e um boné de pescador do Mediterrâneo; ela usa a capelina mentonnaise. O azul e o branco evocam as cores da bandeira da cidade, o amarelo e o laranja do sol reportam‑se aos limões e às laranjas.
Numa das paredes laterais, desenrola‑se uma boda com gente que sugere mourama. Um efebo dança, uma canéfora e um cego trazem orquídeas, símbolo de fertilidade. A mãe do noivo e o homem que consola a irmã — prometida ao nubente — mostram cara de poucos amigos. Montado num cavalo, o casal de protagonistas prepara‑se para partir. Segundo os costumes, que Cocteau se deu ao trabalho de passar a escrito, a mulher devia seguir o marido.

Na parede do lado oposto, a estória de Orfeu e Eurídice. Orfeu, de olhos fechados, deixa cair a lira e, numa figuração pregnante, duas mulheres seguram Eurídice, em vias de morrer. Cocteau sintetizou a lenda: « Orphée en tournant la tête/Perdit sa femme et ses chants/Les hommes devinrent bêtes/Et les animaux méchants. »
Dir‑se‑ia que as duas composições inicialmente mencionadas e o alento que delas ressai apontam para os júbilos que sentem os casados, a alusão ao mito de Orfeu e Eurídice funciona como advertência relativamente aos embargos que lhes surgem pelo caminho. Tudo se coaduna com o orbe de Cocteau, homem que tinha um pé na vida e outro na morte.
Assinale‑se que Cocteau preferia a mitologia à história. Para ele, a história era uma verdade que se tornava ilusão, enquanto a mitologia era uma ilusão que se tornava realidade.

Na imagem do teto, predomina a alegoria. O personagem que monta Pégaso, o cavalo alado, traz à cena a poesia e a elevação que ela deve supor. A ciência toma a forma de uma criatura que, brincando com esferas (os planetas, os mundos), revela conhecimento, acesso ao universo. Aquele que representa o amor vem munido de arco e de flecha.
Exceção à regra: falta, na sala, a escultura de Marianne, símbolo da República Francesa. Cocteau optou por desenhá‑la em dois espelhos, situados perto da entrada principal.
O artista tratou igualmente dos outros pormenores decorativos: cadeiras revestidas com tecido vermelho e cortinas da mesma cor, tapete de padrão leopardado — que achei horroroso —, candeeiros de pé — tampouco os apreciei.
O aposento é credor de visita e espero que dê asas aos consortes. Não é, porém, sítio onde eu gostasse de me casar. O mobiliário e o estampado das carpetes turvam o propósito do belo, reina ali um jeito désuet.


