Serve a presente deposição para dar a conhecer mais uns carmes de Dante Milano (Rio de Janeiro, 1899 – Petrópolis, 1991), escritor que acompanhou os modernistas, mas que não será um modernista (pelo menos, não de corpo inteiro). O amor, o sonho e a morte são temas recorrentes no texto desse literato avesso à fama.
Faço votos de que aprecie os poemas tanto como eu os apreciei.
Poema do falso amor
O falso amor imita o verdadeiro
Com tanta perfeição que a diferença
Existente entre o falso e o verdadeiro
É nula. O falso amor é verdadeiro
E o verdadeiro falso. A diferença
Onde está? Qual dos dois é o verdadeiro?
Se o verdadeiro amor pode ser falso
E o falso ser o verdadeiro amor,
Isto faz crer que todo amor é falso
Ou crer que é verdadeiro todo amor.
Ó verdadeiro Amor, pensam que és falso!
Pensam que és verdadeiro, ó falso Amor!
Pietà
Essa Mulher causa piedade
Com o filho morto no regaço
Como se ainda o embalasse.
Não ergue os olhos para o céu
À espera de algum milagre
Mas baixa as pálpebras pesadas
Sobre o adorado cadáver.
Ressuscitá‑lo ela não pode,
Ressuscitá‑lo ela não sabe.
Curva-se toda sobre o filho
Para no seio guardá‑lo,
Apertando‑o contra o ventre
Com dor maior que a do parto.
Mãe, de Dor te vejo grávida,
Oh, mãe do filho morto!
O caminho
Ela sonhou que era uma morta andando…
Seu corpo ia‑se transformando,
Os restos iam ficando pelo chão,
O mundo ia sumindo,
E ela ia ao longe desaparecendo.
Quem sabe onde termina esse caminho?
Por que por toda a vida e até na morte
Ser como alguém que vai por um caminho?
Bilhete de suicida
Sentir aceso dentro da cabeça
Um pensamento quase que divino,
Como raio de luz frágil e fino
Que num cárcere escuro resplandeça.
Seguir‑lhe o rastro branco em noite espessa,
Ter de uma inútil glória o vão destino,
Ser de si mesmo vítima e assassino,
Tentar o máximo, ainda que enlouqueça.
Provar palavras de sabor impuro
Que a boca morde e cospe porque é suja
A água que bebe e o pão que come é duro,
E deixar sobre a página da vida
Um verso — essa terrível garatuja
Que parece um bilhete de suicida.
Cantiga
A vida é tempo perdido.
O que se ganha é bem pouco.
Que vale ao morto o vivido?
Que vale ao vivo, tampouco?
E nunca me sai do ouvido
Esse rumor incessante:
«A vida é tempo perdido»…
Oh, que marulho distante,
Voz de sepultos oceanos
Num caracol aturdido.
Longos dias, breves anos.
A vida é tempo perdido.
Ao tempo
Tempo, vais para trás ou para diante?
O passado carrega a minha vida
Para trás e eu de mim fiquei distante,
Ou existir é uma contínua ida
E eu me persigo nunca me alcançando?
A hora da despedida é a da partida
A um tempo aproximando e distanciando…
Sem saber de onde vens e aonde irás,
Andando andando andando andando andando
Tempo, vais para diante ou para trás?
Cenário
Tudo é só, a montanha é só, o mar é só,
A lua ainda é mais só.
Se encontrares alguém
Ele está só também.
Que fazes a estas horas nesta rua?
Que solidão é a tua
Que te faz procurar
O cenário maior,
O de uma solidão maior que a tua?
