1. Um dos prazeres que tenho na vida advém da leitura da revista DiVersos – Poesia e Tradução. O respetivo n.º 38, da primavera de 2025, levou‑me a conhecer parte da obra de Dante Milano, poeta que nasceu no Rio de Janeiro, em 1899, e que morreu em Petrópolis, no ano de 1991.
Filho das malvas, Dante Milano foi, na adolescência, ajudante de revisor no Jornal da Manhã e no Jornal do Commercio. Com 17 anos, empregou‑se como revisor na Gazeta de Notícias. Mais tarde, trabalhou no setor de recenseamento do Estado e no juizado de menores do Rio de Janeiro. Funcionário do Ministério da Justiça até se aposentar, em 1964, Dante Milano dirigiu um museu da polícia e chefiou o gabinete de Álvaro Ribeiro da Costa, juiz do Supremo Tribunal Federal brasileiro.
O autor em pauta escreveu carmes e prosa, traduziu odes de Horácio, cantos da Divina Comédia, poemas de Baudelaire e de Mallarmé. Amigo de modernistas — Manuel Bandeira, Murilo Mendes e Mário de Andrade, por exemplo —, não será, ele próprio, um modernista (pelo menos, não de corpo inteiro). A sua poesia não está vinculada a um tempo particular nem a uma geografia específica e nela são recorrentes o amor, o sonho (vide os três primeiros poemas que apresento juso) e a morte.
Avesso à exposição pública, à fama e a mundanidades, Dante Milano detestava o som do «rumor da falsa glória». Publicou pouco — o primeiro livro que deu à estampa viu luz, contra a sua vontade, quando o vate tinha 49 anos —, imputa‑se‑lhe uma «vocação póstuma».[1]

2. Aqui ficam alguns poemas de Dante Milano. Faço votos de que o leitor os aprecie tanto como eu os apreciei.
Poema III de Sonetos e fragmentos
O amor de agora é o mesmo amor de outrora
Em que concentro o espírito abstraído,
Um sentimento que não tem sentido,
Uma parte de mim que se evapora.
Amor que me alimenta e me devora,
E este pressentimento indefinido
Que me causa a impressão de andar perdido
Em busca de outrem pela vida afora.
Assim percorro uma existência incerta
Como quem sonha, noutro mundo acorda,
E em sua treva um ser de luz desperta.
E sinto, como o céu visto do inferno,
Na vida que contenho mas transborda,
Qualquer coisa de agora mas de eterno.
Olhos fechados
Vejo‑a de olhos fechados. Vem sozinha.
Sua veste é uma nuvem que a transporta.
Sou eu que a invento, é uma ilusão só minha,
Sei que ela não existe. Não importa.
Abrindo os braços, para mim caminha,
Visão antiga que eu julgava morta.
O espírito ama a irrealidade. De onde
Surge a imagem abstrata que se esconde
Em mim? e também eu, vendo‑a, transponho
A realidade que quer ser sublime
E inventa um nulo amor que só se exprime
No meu recôndito, invisível sonho.
Metamorfoses
Sonho maior que o sonho de quem dorme,
Eu vi, de olhos despertos, fabulosas
Metamorfoses, conexões monstruosas
Entre o olhar e a aparência multiforme.
Eu vi o que a luz expele e a sombra engole.
Vi como na água o corpo em si se enrola,
Quebra‑se o torso, a perna se descola
E os braços se desmancham na onda mole.
Vi num espelho alguém cujo reflexo
O transformava noutra criatura.
E num leito de amor já vi perplexo
Seios com olhos! e mudar‑se a dura
Nuca em anca, o ombro em joelho, a axila em sexo,
O dorso em coxa, o ventre em fronte pura.
A seguir, dois poemas de tremenda atualidade. Olhando hoje para o planisfério, não se topa um «doloroso corpo mapa‑múndi»?!
Os trabalhos do mundo
Bate, coração do Mundo.
Bem escuto o teu ritmo,
Os saltos do sangue humano correndo pelas artérias
Do doloroso corpo mapa‑múndi.
Os pés em marcha, as máquinas gesticulando.
A terra em seu labor de guerra eterna.
Ter de lutar
Por um acontecimento qualquer,
Pelo que outrora os sinos repicavam
E agora as sirenas uivam desvairadas,
Pela explosão de um sol
Brilhando no aço das armas
Dos homens com penachos e bandeiras…
Ao lado a procissão misteriosa das suas sombras no chão,
Marcha de heróis ou leva de prisioneiros?
Salmo perdido
Creio num deus moderno,
Um deus sem piedade,
Um deus moderno, deus de guerra e não de paz.
Deus dos que matam, não dos que morrem,
Dos vitoriosos, não dos vencidos.
Deus da glória profana e dos falsos profetas.
O mundo não é mais a paisagem antiga,
A paisagem sagrada.
Cidades vertiginosas, edifícios a pique,
Torres, pontes, mastros, luzes, fios, apitos, sinais.
Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais,
As aves, os montes, as nuvens não nos reconhecem mais,
Deus não nos reconhece mais.
Glória morta, mais um carme com inegável pertinência no tempo presente, tempo de evanescências no qual, rodeados de chalupas que fizeram tirocínio nas redes sociais, os que permanecem lúcidos parecem ser irreais.
Glória morta
Tanto rumor de falsa glória,
Só o silêncio é musical,
Só o silêncio,
A grave solidão individual,
O exílio em si mesmo,
O sonho que não está em parte alguma.
De tão lúcido, sinto‑me irreal.
Para quem goste de cidades (eu gosto, mas prefiro amar uma mulher):
A cidade
Ao ver os altos castelos
Do Alhambra, dos Alijares
Lavrados à maravilha,
El‑rei Don Juan dizia:
«Se tu quisesses, Granada,
Contigo me casaria
E te daria como arras
Córdova e Sevilha!»
«Não sou solteira nem viúva,
Sou casada, rei Don Juan,
Com Abenámar o Mouro,
Senhor que muito me quer.»
Maior felicidade
Que amar uma mulher,
Amor de longo olhar
E presente saudade,
Amor muito maior
É amar uma cidade!
No próximo texto, publicarei outros poemas de Dante Milano.
[1] Na redação desta síntese da vida e da obra do vate, baseei‑me nos dois textos de Ivan Junqueira — Dante Milano: o Pensamento Emocionado e Biobliografia — que acompanham os poemas de Dante Milano em obra publicada pela editora Global: MILANO, Dante, Os Melhores Poemas de Dante Milano, seleção de Ivan Junqueira, 1.a reimpressão da 1.a edição, São Paulo, Global, 2008.