Teixeira de Pascoaes, A Beira (num Relâmpago)

Vigésimo sexto escrito da série Autores que cantaram o Douro

1. Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos — na veste de homem de letras, usou o pseudónimo «Teixeira de Pascoaes» — nasceu e morreu no concelho de Amarante, em 1877 e 1952, respetivamente. Estudou Direito e, antes de se entregar à escrita e ao pensamento, devotou pouco mais de dez anos às lides forenses.

Teixeira de Pascoaes integrou a sociedade Renascença Portuguesa e foi um dos diretores da revista a ela associada, A Águia. Nesta, durante a segunda década do século xx, teorizou e deu expressão ao saudosismo, movimento que, em definição proposta no dicionário de língua portuguesa da Infopédia, «advogava a renovação intelectual do país por meio de um regresso à tradição cultural portuguesa, nomeadamente através da exaltação da saudade (tida como o traço definidor e suprema criação sentimental do espírito português) e do culto de um patriotismo místico de carácter messiânico», e que, na síntese de Hélder Macedo, almejava «reencontrar a essencialidade espiritual de Portugal numa concepção nacionalista que redimensionasse a nostalgia do que poderia ter sido no que seria o prenúncio de uma nova universalidade portuguesa»[1].

Pascoaes publicou poesia e prosa (ficção narrativa, biografias romanceadas, textos memorialísticos, ensaios). Leu fundo na realidade, escreveu atraído por aquilo que não se vê, ao recurso de natureza física agermanou o recurso intátil ou imagético, apelou ao sentimento religioso das coisas.

2. A Beira (num Relâmpago), publicado pela primeira vez em 1916, dimana de um passeio de automóvel que Teixeira de Pascoaes e outras pessoas fizeram, de Amarante a Arganil.

Nos nossos dias, com exceção do que sucede nalgumas viagens — por exemplo, aquelas que levam o viator a circular por estradas situadas em zonas pitorescas ou a coast to coast nos Estados Unidos —, pouco se matuta na serventia do carro, mal se nota que ele constitui um prius, um fator prévio determinante. Já em A Beira (num Relâmpago), escrito quando o popó não era acessível a M. Tout‑le‑Monde, o respetivo autor presta vénia ao automóvel e mostra‑se ciente do impacto que a deslocação por tal meio tem na forma de ver o mundo.

Sim, A Beira (num Relâmpago) é um livro de viagens e contém descrições interessantes. Mas distingue‑se de milhentos livros de viagens mercê do repetido emprego da simbolização: aquilo que o excursionista vê é sinal duma outra realidade, de natureza incorpórea, que descobre o sentido mais íntimo das coisas. Dessarte se franqueia o acesso ao universo imagético do autor.[2] Atente‑se, por exemplo, neste trecho: «Aflito de ver árvores, casas, outeiros, planaltos, em volta de nós, na mais desordenada debandada, descanso os olhos no sereno e moroso deslocar do horizonte longínquo. E faz bem à nossa alma contemplar os largos panoramas, sentir as primeiras vertigens do Infinito — o que é já ensaiar em vida o voo fantástico da morte[3] — o grifo é da minha autoria.

3. Apresento um excerto da obra em apreço, relativo à passagem de Teixeira de Pascoaes e dos seus companheiros de jornada em terra duriense.

«Corremos para o Douro. O rio célebre aproxima‑se. A paisagem principia a falar dele, numa voz soturna de sombras, que se acumulam à nossa frente, esboçando os íngremes outeiros da outra banda.

Um trôpego carro de bois, cheio de peso e sono, surdo aos berros da sirene, obriga‑nos a parar de novo.

À direita, uma indecisão verde‑escura, com raras nódoas brancas. Daqueles lados abismáticos vem um murmúrio estertoroso. É o rio, entrevisto nas trevas, completando‑se fantasticamente. É o Douro, aflito num pesaledo [pesadelo], barrento e amarelo, em que se vê estrangulado pelas margens. Ah! como elas sobem, com grande esforço, num suor frio de fontes, desenhando em nocturnos traços de carvão as altíssimas encostas do enorme e estranho Vale, essa ruga mais profunda da velha paisagem lusitana, escoando para o mar as suas lágrimas.

Deste panorama surpreendente, à luz do Sol — desde a líquida angústia do rio que escachoa, entre remorsos de pedra, tocado, aqui e além, pela carícia branca duma vela, que é o interesse do homem angelizado, aos velhos solares e velhas quintas, alcandoradas sobre íngremes declives em degraus de verdura, invocando a escadaria dum santuário, que, lá no alto, eleva a sua desnuda e negra arquitectura montanhosa — deste panorama surpreendente, à luz do Sol, apenas vejo as suas largas linhas espectralizadas, donde emana um vago e gélido terror, que é o próprio rio entremostrando ao nosso imaginar a escura lividez dos pegos mortos, síncopes de abismo em que gelam as águas torvas e medonhas.

Um ronco da sirene, um férreo estremecimento, um rápido abalo, que nos desequilibra, de surpresa, e esta sublime paisagem sonhada se desfaz em voos de sombra que perpassam, vertiginosamente, e são árvores e montes, em volta de nós, turbilhonando.

Seguimos, ao longo do rio, através duma mistura movediça de coisas, que se confundem e combinam em aspectos incoerentes, na imensa escuridade.»[4]

4. Escrevo desprendido de cânones e de academismos, aproveito a folga que isso me dá para aqui largar uma nota, marginal ao objeto do presente texto.

Logo que deparou com uma lápide de mármore erigida sobre o túmulo de um cão, Teixeira de Pascoaes distinguiu certas almas: almas que amam em quatro patas, é dizer, com mais firmeza do que o humano[5]. Subscrevo semelhante parecer. É verdade que me estou a tornar caninetrovert, mas, ainda que assim não fosse, cá deixaria este registo de teor animalista.


[1] MACEDO, Hélder, Oitocentos Anos de Literatura, Lisboa, abysmo, 2019, p. 42.

[2] Cf. SÁ, Maria das Graças Moreira de, Teixeira de Pascoaes, texto publicado no sítio do Instituto Camões:

https://www.instituto-camoes.pt/activity/centro-virtual/bases-tematicas/figuras-da-cultura-portuguesa/teixeira-de-pascoaes [consultado na internet em 26.3.2025].

[3] PASCOAES, Teixeira de, «A Beira (num Relâmpago)», in PASCOAES, Teixeira de, A Beira (num Relâmpago) / Duplo Passeio, introdução de António Mega Ferreira, Lisboa, Assírio & Alvim, 1994, p. 78.

[4] PASCOAES, Teixeira de, ob. cit., pp. 28‑29.  

[5] Cf. PASCOAES, Teixeira de, ob. cit., p. 31.

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