Décimo quarto texto da série Autores que Cantaram o Douro
1. Eça de Queiroz (Póvoa de Varzim, 1845 – Neuilly‑sur‑Seine, 1900), figura de proa do beletrismo luso e o maioral dos prosadores realistas do nosso país, escreveu textos cativantes, deliciosos, que agradam mesmo àqueles que pouco se interessam por livros: é fácil apreciar a vertente satírica da sua obra, a crítica da vida social portuguesa.
Eça de Queiroz estudou Direito em Coimbra, exerceu a advocacia, deixou textos em jornais e noutras publicações periódicas, desenvolveu carreira na diplomacia: foi cônsul de Portugal em Havana, em Newcastle, em Bristol e em Paris. Destacou‑se como romancista, deu à estampa crónicas e contos, produziu obra epistolográfica.
A Cidade e as Serras foi publicado em 1901, já o seu autor tinha morrido. Pela voz de Zé Fernandes, narrador e personagem da estória, trava o leitor conhecimento com Jacinto, o respetivo protagonista.

Jacinto, um fidalgo ricaço, nasceu em Paris, num palácio dos Campos Elíseos, e aí ficou a viver, envolto em conforto e rodeado de livros e de todas as finuras técnicas que o século xɪx podia oferecer. Para ele, civilização e cidade estavam indissoluvelmente ligadas, e só na última sentia a solidariedade dos humanos. No palácio fez instalar, por exemplo, um telescópio, um telégrafo e um elevador dotado de divã e de outros confortos. Por gordos tubos acústicos chamava os criados, dava‑lhes ordens. O serviço de mesa incluía um garfo para as ostras, outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes, outro para as frutas, outro para o queijo.
Sucede que tanta fartura enfadou‑o, nele provocou taedium vitae. Jacinto acabou por se fixar na propriedade rural da sua família em Tormes e foi aí que encontrou a felicidade e o justo equilíbrio da vida. Soldou‑se à terra, promoveu a lavoura, melhorou as condições de vida dos que para si trabalhavam, casou e teve dois filhos.
A quinta de Tormes fica, na realidade, em Santa Cruz do Douro, no concelho de Baião. Era a Quinta de Vila Nova, que em partilha de herança coube a Emília de Castro, a mulher do escritor. Para vincar o contraste com a urbe, Eça de Queiroz elegeu, pois, a região duriense.
Numa carta de 2 de junho de 1898, dirigida à sua mulher e escrita na sequência de uma visita que fez à quinta, Eça de Queiroz reconhece a beleza da serra, mas não é meigo no que à paisagem humana diz respeito: «Um dos inconvenientes destes sítios é a horrenda imundície da gente! Decerto há miséria, e esse é um dos reversos de toda esta beleza. Decerto as casas de aldeia ou dos caseiros são, por culpa dos proprietários, verdadeiros covis onde mesmo gado estaria mal. Mas há também, na gente, o amor da imundície.»[1]
Concentremo‑nos no cenário natural. Nada melhor do que ler descrição relativa ao que Jacinto e Zé Fernandes veem no caminho que os leva da estação ferroviária local à propriedade situada em Tormes. «E em breve os nossos males esqueceram ante a incomparável beleza daquela serra bendita!
Com que brilho e inspiração copiosa a compusera o Divino Artista que faz as serras, e que tanto as cuidou, e tão ricamente as dotou, neste seu Portugal bem‑amado! A grandeza igualava a graça. Para os vales, poderosamente cavados, desciam bandos de arvoredos, tão copados e redondos, de um verde tão moço, que eram como um musgo macio onde apetecia cair e rolar. Dos pendores, sobranceiros ao carreiro fragoso, largas ramarias estendiam o seu toldo amável, a que o esvoaçar leve dos pássaros sacudia a fragrância. Através dos muros seculares, que sustêm as terras liados pelas heras, rompiam grossas raízes coleantes a que mais hera se enroscava. Em todo o torrão, de cada fenda, brotavam flores silvestres. Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a sólida nudez do seu ventre polido pelo vento e pelo sol; outras, vestidas de líquen e de silvados floridos, avançavam como proas de galeras enfeitadas: e, de entre as que se apinhavam nos cimos, algum casebre que para lá galgara, todo amachucado e torto, espreitava pelos postigos negros, sob as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento lhe semeara nas telhas. Por toda a parte a água sussurrante, a água fecundante… Espertos regatinhos fugiam, rindo com os seixos, de entre as patas da égua e do burro; grossos ribeiros açodados saltavam com fragor de pedra em pedra; fios direitos e luzidios como cordas de prata vibravam e faiscavam das alturas aos barrancos; e muita fonte, posta à beira de veredas, jorrava por uma bica, beneficamente, à espera dos homens e dos gados… Todo um cabeço por vezes era urna seara, onde um vasto carvalho ancestral, solitário, dominava como seu senhor e seu guarda. Em socalcos verdejavam laranjais rescendentes. Caminhos de lajes soltas circundavam fartos prados com carneiros e vacas retouçando — ou mais estreitos, entalados em muros, penetravam sob ramadas de parra espessa, numa penumbra de repouso e frescura. Trepávamos então alguma ruazinha de aldeia, dez ou doze casebres, sumidos entre figueiras, onde se esgaçava, fugindo do lar pela telha vã, o fumo branco e cheiroso das pinhas. Nos cerros remotos, por cima da negrura pensativa dos pinheirais, branquejavam ermidas. O ar fino e puro entrava na alma, e na alma espalhava alegria e força. Um esparso tilintar de chocalhos de guizos morria pelas quebradas…»[2]
2. A Cidade e as Serras aproposita múltiplas discussões, nomeadamente acerca do cosmopolitismo, do recurso às novidades tecnológicas e da contraposição entre o campo e a cidade.
No que respeita à utilização dos meios que o progresso prodigaliza, a esmagadora maioria das pessoas já não se dispõe a viver sem eles. Isso é válido, em particular, no universo digital — poucos aceitariam abdicar das facilidades que ele proporciona. No Facebook, é comum assistir a ataques de ludismo, topar com pessoas que renegam essa rede social e vão «respirar um ar mais fresco». Por via de regra, não aguentam mais de dois dias longe do Facebook…
Cidades como Londres ou Nova Iorque ameigam o exercício do ideal cosmopolita, mas não o convertem em evidência. Ele supõe uma abertura de espírito que falta a muita gente.
Os critérios subjacentes à opção de morar no campo ou na cidade não assentam no acesso às comodidades da vida moderna, aos gadgets ou à instrumentária técnica. Essa escolha não radica no acesso à civilização (termo avonde empregue no livro). Ela depende de outros fatores. Considerando a possibilidade de beneficiar de bons cuidados de saúde, de boas escolas e de equipamentos culturais, a província fica a perder. Pensando na pressão populacional, nos preços obscenos das casas, no trânsito e, em alguns casos, na turistificação, a cidade sai derrotada. Outrossim, as pressas e os espanejos quotidianos na urbe criam agressividade em muitas almas.
Tudo depende da ponderação que cada um faça, da cidade ou do lugarejo em apreço, da condição socioeconómica de quem for chamado a decidir. Por vezes, cansado da urbe e do ajuntamento — de pessoas, carros e edifícios —, sinto vontade de compor a minha própria sinfonia pastoral e de ir viver para a aldeia. Mas prezo o anonimato e temo os parranas, as mentes e a coscuvilhice do meio pequeno. Morei em Coimbra, uma cidade, e mesmo aí sentia o peso do provincianismo e dos papões da vida alheia.
Gostei de reler A Cidade e as Serras, regalei‑me com o espírito telúrico de Jacinto. A mais simples dádiva da natureza nele suscitava longo encanto. Porém, se quiser passar da ficção para a realidade em busca de extrapolações, não posso esquecer quão privilegiado era o seu estatuto e devo ter presente o que é dito já a seguir, no ponto 3.
3. Fecho este escrito com a transcrição de um parágrafo de Ramalho Ortigão, Seu Exemplo e Sua Obra, um estudo de Augusto de Castro que antecede a edição integral d’As Farpas e que contém diversas referências a Eça de Queiroz.
Prefiro arrostar com a acusação de reproduzir demasiado texto doutrem a privar o leitor dum belo naco de prosa que ajuda a entender Eça e também A Cidade e as Serras.
«O génio de Eça de Queirós é, no fundo, filho da Enciclopédia e o romancista descende, em linha recta, de Flaubert, do romantismo e do naturalismo franceses. Há no corte da sua ironia uma nítida influência do humorismo inglês. Eça foi um grande escritor europeu nascido em Portugal — e se nas suas obras o meio, as personagens, a païsagem, a observação são quási sempre estruturalmente portuguesas, o molde do seu espírito, o talhe da sua prosa, a sua educação sentimental e crítica vêm‑nos directamente do cosmopolitismo artístico do tempo. Os seus próprios livros de regresso — de regresso à terra e à écloga natais — como A Ilustre Casa de Ramires e As Cidades [A Cidade] e as Serras, traduzem o entusiasmo e a poesia de uma iniciação e de uma emoção excessivamente compostas e literárias. Muito mais do que o sangue rude da païsagem e da gente, há as tintas de um Corot. Aquela aldeia de Santa Ireneia, o Tormes, entre o Tua e o Tinhela, são, na sua sedução e na sua exaltação, um Portugal muito mais romântico do que real. São Trás‑os‑Montes e os socalcos do Douro vistos com o coração — mas vistos de Neully [Neuilly‑sur‑Seine]. Em arte, a sinceridade é uma coisa: a verdade de um temperamento e de uma sensibilidade é outra.»[3]

[1] Cf. QUEIROZ, Eça de, A Cidade e as Serras, fixação do texto e notas de Helena Cidade Moura, 1.a edição na Livros do Brasil/Porto Editora, reimpressão, [s.l.], Livros do Brasil, 2019, pp. 10‑11.
[2] QUEIROZ, Eça de, ob. cit., pp. 145‑146.
[3] CASTRO, Augusto de, Ramalho Ortigão, Seu Exemplo e Sua Obra, in ORTIGÃO, Ramalho, As Farpas. O País e a Sociedade Portuguesa, tomo I, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1944, pp. XVII‑XVIII.