Duodécimo texto da série Autores que Cantaram o Douro
Agustina Bessa‑Luís (Vila Meã, Amarante, 1922 – Porto, 2019) é um dos grandes prosadores da literatura portuguesa. Dedicou‑se à escrita, interveio na vida pública, integrou a Alta Autoridade para a Comunicação Social, foi diretora d’O Primeiro de Janeiro e do Teatro Nacional D. Maria II. A região do Douro, que conheceu logo nos verdes anos, deixou marca na sua obra.
Vale Abraão, de 1991, foi concebido como guião para um filme de Manoel de Oliveira. O palco da respetiva trama é a terra duriense (sobretudo três quintas aí situadas). Ela oferece o meio certo para apresentar a Bovary portuguesa, contrapondo‑a a espíritos acanhados e provincianos, da burguesia e não só.

Agustina Bessa‑Luís descreve as residências dos terratenentes, a atmosfera que por lá reinava, o globo doméstico no qual circulavam patrões e criados. «A casa fervia de ditos, intrigas, assuntos de fora, coisas maliciosas e sentidas, de morte, de sexo, de paixões várias. A casa era um ninho de abelhas, agitada, enrolada no próprio zumbido, cativeiro de sonhos e de avisos; promíscua, doce, pachorrenta, zelosa.»[1] E desmiúda o lavrador local: «Sempre endividado, sempre com hipotecas a vencer, sempre lutando com o aumento dos salários e dos adubos, sempre abatido pelo preço dos vinhos, o lavrador do Douro era um colosso de persistência, de afinação com o destino, de secura empresarial.»[2]
À semelhança do que sucede noutros trabalhos da autora, o fio narrativo do romance é sinuoso e abre para córregos onde alguma coisa se aprende a propósito da condição humana, da alma e dos modos dos homens e das mulheres.
Ema, a Bovary portuguesa, a Bovarinha, vê‑se casada com um homem que não ama e que lhe causa desconsolo, um homem cujas peúgas escorregavam para os tornozelos e que, digo‑o eu, provavelmente despia as calças antes de tirar as meias. Ema era linda, lindíssima, a sua beleza provocava uma sorte de paralisia e a sempiterna inveja. De tal jeito que, mesmo sem ter praticado ato passível de reprovação, ela já era pasto da má‑língua.
Vale Abraão contém trechos antológicos acerca da invídia. Atente‑se neste: «A Igreja queimava as bruxas julgando localizar o diabo nas suas orgulhosas confissões; mas o que queimava era a inveja, tentando isolar a comunidade da sua aversão, do seu maciço desejo de vencer tudo o que brilha — rosto formoso, seara abundante, glória de espada ou de pena. O invejoso começa por esperar prodígios da sua impotência, e acaba por querer reduzir tudo à sua medida.»[3]
No que respeita à invídia que as mulheres dirigem para outras mulheres, o que Agustina diz quadra, ad amussim, com o que eu ouço à minha companheira, alvo da zelotipia de algumas damas.
À espera de Ema, estava «uma doce miséria de relações matrimoniais, com um homem que pagaria as suas contas e que ela amaria como se corresse o fio do terço»[4] — narrativa certeira acerca da forma como, usualmente, corria a vida conjugal. No entanto, sempre insatisfeita e senhora dum espírito livre, Ema não quis conhecer a submissão; debateu‑se com aquele meio tacanho e esturrado e partiu a cerca montada por pataratas e por costumes. O padrinho de Ema, por exemplo, limpava as unhas com a própria unha, quando entediado.
Certo é que, tendo em mente aquilo que a sociedade local concedia, nanja a Bovarinha foi longe demais. Designadamente, não pôs termo ao seu casamento.
Em Vale Abraão colhe‑se ensinamento a propósito das mulheres. Mas também lá está a lição que versa sobre os homens. «Há um momento dramático na vida de um homem: é quando ele pressente que a sua imagem está em risco, o que o obriga a mentir às mulheres. Em geral, os homens amam, sofrem e ocupam‑se do seu ofício sem ter necessidade de mentir profundamente. A confiança deles repousa na premissa de que eles constituem objecto de fé. São parte desse ser relativo que é o Pai admirável, ao mesmo tempo justo e injusto, que ordenou a vida profunda das mulheres. Nenhum olhar perscrutador atingiu e violou a interioridade, fictícia ou não dos homens.»[5] Hoje, não será tanto assim. Graças ao empoderamento feminino e às mensagens que a sociedade vai passando, os homens vão deixando de se ver como objetos de fé.
Em Agustina Bessa‑Luís, desgosto do jeito de (não) sequenciar a narrativa. Acabei de ler Vale Abraão e percebi que, no que tange à empresa da autora, me tornei mais complacente. O prazer que sinto ao lê‑la tem demasiadas intermitências, faz‑me falta o texto correntio. Contudo, mercê dos retratos psicológicos e societais que constam do livro, e também por aquilo que ele me deu em matéria de condição humana, dei por bem empregue o tempo em que o tive nas minhas mãos. Bem assim, Vale Abraão ostenta valia histórica: introduziu‑me no seio da sociedade burguesa duriense, que, de outra forma, eu não teria conhecido.
[1] BESSA‑LUÍS, Agustina, Vale Abraão, 5.ª edição, Lisboa, Guimarães Editores, 2005, p. 17.
[2] BESSA‑LUÍS, Agustina, ob. cit., pp. 10‑11.
[3] BESSA‑LUÍS, Agustina, ob. cit., p. 152.
[4] BESSA‑LUÍS, Agustina, ob. cit., p. 34.
[5] BESSA‑LUÍS, Agustina, ob. cit., pp. 166‑167.